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ANÁLISE
Alice na toca do Chalaça
NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dentro do enigma da "Alice
no País das Maravilhas" há uma
outra charada chamada Lewis
Carroll, pseudônimo literário
do reverendo Charles Lutwidge
Dodgson, diácono da Igreja da
Inglaterra e professor de matemática da egrégia Universidade
de Oxford.
Não parece incrível que alguém com créditos tão conservadores e ademais austero, refinado, reservado, gago, tímido e
introvertido tenha sido o criador da mais famosa e irreverente heroína da cultura inglesa?
Não há algo incrível no fato
desse pastor e professor de lógica e ciências matemáticas ter
se tornado num precursor da literatura moderna, fecundando
talentos como Oscar Wilde,
Virgínia Wolf, T.S.Eliot, James
Joyce e Samuel Beckett?
Charles Dodgson negou a vida inteira, de pés juntos, que
fosse Lewis Carroll. Parece um
clássico caso esquizofrênico de
identidade partida ou, para ficar na literatura, uma espécie
de Dr. Jekill e Mr. Hide, o médico e o monstro, numa versão de
o reverendo e o chalaça.
Nesse sentido, a solução do
enigma parece simples: Dodgson encarnaria a dimensão vitoriana e vetusta, enquanto
Carroll personificava o lado
sarcástico e iconoclasta. Qual
deles, então, seria o hipócrita?
O buraco é mais embaixo, como diria o Coelho. Carroll sintetizava os múltiplos dotes intelectuais e artísticos de Dodgson. A identidade fictícia porém lhe dava liberdade para
exercer uma crítica ética que
atingia os próprios valores e a
cultura que ele representava.
Dodgson era um crítico arguto da civilização vitoriana, mas
investia contra ela por dentro.
Travestido de Carroll, ele a atacava por inteiro, mudando o
ângulo como o Chapeleiro e a
Lebre mudavam de cadeira
sem parar no Chá Maluco.
Como Dodgson, usou seus
conhecimentos matemáticos
para, por exemplo, construir
um sofisticado sistema de representação proporcional de
minorias em quaisquer foros
políticos, que só viria a ser assimilado e adotado no século 20.
Ele igualmente mudou o sentido agressivo e competitivo da
ética esportiva, propondo modelos estatísticos que, ao contrário de classificar vencedores,
avaliavam o conjunto da performance, premiando a graça, a
destreza e a cooperação. Esse
método aproximava o esporte
da dança, como na ciranda eufórica dos bichos na Corrida de
Convenção.
Mas era na persona de Carroll que ele virava a cultura vitoriana de ponta-cabeça. Dois
fundamentos organizavam todo o edifício da civilização britânica. Um era o conceito de
progresso, contínuo e cumulativo. O outro era uma dicotomia moral que distinguia com
nítida clareza o bem e o mal, o
certo e o errado. As aventuras
de Alice implodem ambos.
O País das Maravilhas é um
caos fragmentado, anárquico e
amoral, onde o tempo é cíclico,
a linguagem é ambígua e a ação
é ineficaz. Todos mandam, mas
ninguém obedece. Todos falam, mas ninguém ouve. Todos
agitam, mas nada acontece.
Dodgson queria reformar o
império, Carroll quer reconfigurar a cultura. Mas Alice só
quer sair do buraco.
NICOLAU SEVCENKO é professor de história da
cultura na USP e na Universidade Harvard
(EUA), e foi o tradutor de "Alice no País das Maravilhas" (editora Cosac Naify).
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