São Paulo, terça-feira, 09 de março de 2010

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ANÁLISE

Alice na toca do Chalaça

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dentro do enigma da "Alice no País das Maravilhas" há uma outra charada chamada Lewis Carroll, pseudônimo literário do reverendo Charles Lutwidge Dodgson, diácono da Igreja da Inglaterra e professor de matemática da egrégia Universidade de Oxford.
Não parece incrível que alguém com créditos tão conservadores e ademais austero, refinado, reservado, gago, tímido e introvertido tenha sido o criador da mais famosa e irreverente heroína da cultura inglesa? Não há algo incrível no fato desse pastor e professor de lógica e ciências matemáticas ter se tornado num precursor da literatura moderna, fecundando talentos como Oscar Wilde, Virgínia Wolf, T.S.Eliot, James Joyce e Samuel Beckett?
Charles Dodgson negou a vida inteira, de pés juntos, que fosse Lewis Carroll. Parece um clássico caso esquizofrênico de identidade partida ou, para ficar na literatura, uma espécie de Dr. Jekill e Mr. Hide, o médico e o monstro, numa versão de o reverendo e o chalaça.
Nesse sentido, a solução do enigma parece simples: Dodgson encarnaria a dimensão vitoriana e vetusta, enquanto Carroll personificava o lado sarcástico e iconoclasta. Qual deles, então, seria o hipócrita? O buraco é mais embaixo, como diria o Coelho. Carroll sintetizava os múltiplos dotes intelectuais e artísticos de Dodgson. A identidade fictícia porém lhe dava liberdade para exercer uma crítica ética que atingia os próprios valores e a cultura que ele representava.
Dodgson era um crítico arguto da civilização vitoriana, mas investia contra ela por dentro. Travestido de Carroll, ele a atacava por inteiro, mudando o ângulo como o Chapeleiro e a Lebre mudavam de cadeira sem parar no Chá Maluco.
Como Dodgson, usou seus conhecimentos matemáticos para, por exemplo, construir um sofisticado sistema de representação proporcional de minorias em quaisquer foros políticos, que só viria a ser assimilado e adotado no século 20.
Ele igualmente mudou o sentido agressivo e competitivo da ética esportiva, propondo modelos estatísticos que, ao contrário de classificar vencedores, avaliavam o conjunto da performance, premiando a graça, a destreza e a cooperação. Esse método aproximava o esporte da dança, como na ciranda eufórica dos bichos na Corrida de Convenção.
Mas era na persona de Carroll que ele virava a cultura vitoriana de ponta-cabeça. Dois fundamentos organizavam todo o edifício da civilização britânica. Um era o conceito de progresso, contínuo e cumulativo. O outro era uma dicotomia moral que distinguia com nítida clareza o bem e o mal, o certo e o errado. As aventuras de Alice implodem ambos.
O País das Maravilhas é um caos fragmentado, anárquico e amoral, onde o tempo é cíclico, a linguagem é ambígua e a ação é ineficaz. Todos mandam, mas ninguém obedece. Todos falam, mas ninguém ouve. Todos agitam, mas nada acontece.
Dodgson queria reformar o império, Carroll quer reconfigurar a cultura. Mas Alice só quer sair do buraco.

NICOLAU SEVCENKO é professor de história da cultura na USP e na Universidade Harvard (EUA), e foi o tradutor de "Alice no País das Maravilhas" (editora Cosac Naify).



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