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MEMÓRIA
O espetáculo do cinema
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
O que vemos, ao assistir a um
filme de Stanley Kubrick é, geralmente, um processo de decomposição.
Essa decomposição pode ser
psíquica e dramática ("Lolita"),
épica ("2001"), bufa ("Dr. Fantástico"), bélica ("Glória Feita
de Sangue", "Nascido para Matar"). Em qualquer circunstância, existe ali um mal-estar profundo do humano, um pessimismo tão mais incômodo quanto
nesses filmes raramente o homem se transforma.
Dois casos dão bem a medida
dessa maneira de olhar as coisas.
Em "2001, Uma Odisséia no Espaço", tudo se inicia quando, na
comunidade primitiva, o futuro
homem descobre a arma e, com
ela, a violência.
Essa arma, jogada para o espaço, funde-se com a imagem da
nave Discovery cruzando o espaço, como a sintetizar dezenas
de milhares de anos em dois segundos: tudo mudou, para que
nada mudasse; a violência seria
a lei humana em qualquer circunstância.
Outro caso é o de "Spartacus",
filme que assumiu depois que
Anthony Mann deixou a direção.
Kubrick nunca engoliu o roteiro de Dalton Trumbo, no qual o
escravo Spartacus forma um
exército de escravos para combater Roma, mas, mais do que
isso, uma comunidade de seres
iguais, dispostos a impor a igualdade: olhar excessivamente otimista, fraterno, confiante -em
suma, olhar que Kubrick não
poderia partilhar.
Stanley Kubrick optou por observar nesse ser ora frágil, ora
fútil, antes de tudo um espetáculo. Seu rigor tornou-se famoso:
12 filmes em 45 anos, invenções
tais como filmar cenas a luz de
velas iluminadas unicamente
por velas (em "Barry Lyndon"),
o que fez com a ajuda de lentes
criadas pela Nasa, ousadias como levar um ano e meio apenas
para filmar as sequências com
efeitos especiais de "2001".
Esse rigor fez com que sempre
houvesse ao menos uma razão
para que cada um de seus filmes
fosse um acontecimento marcante e trouxesse uma novidade,
seja tecnológica, seja de enfoque.
Espetáculo
Na sua geração, é possível dizer que o cinema reinventou-se
de duas formas: o modo de produção, a busca da coloquialidade e da liberdade foram as preocupações centrais da nouvelle
vague.
De certa forma, essa corrente
combateu o cinema como espetáculo. Kubrick, ao contrário,
trabalhou dentro de uma ótica
que privilegiava o espetáculo.
Mas não se tratava do espetáculo
no sentido clássico, como era
conhecido desde o início do século. Em Kubrick, o espetáculo
era invariavelmente frio, pois
não conduzia à constituição de
heróis, mas ao seu esvaziamento. Não era um espetáculo no
sentido clássico, mas uma reflexão sobre ele.
Talvez por isso a guerra fosse
um de seus assuntos preferidos.
"Glória Feita de Sangue" ou
"Nascido para Matar" são filmes
de guerra que se negam a mostrar o espetáculo da guerra. Por
meio da guerra, no entanto, Kubrick mostra o espetáculo da insânia dos homens e sua infinita
futilidade.
Assim, em vez de cultivar o cinema-espetáculo, cada filme de
Stanley Kubrick nos aproximava do espetáculo do cinema.
Eram formas, ritmos, ligações
entre sons e imagens que pareciam preocupá-lo obsessivamente, quer fizesse um policial
modesto no início da carreira,
como "A Morte Passou por Perto", quer tivesse à sua disposição
recursos ilimitados, como em
"2001".
Embora seu cinema nunca tenha se confundido com a banalização da violência, nenhum outro cineasta percebeu, tanto
quanto ele, a chegada de um
mundo em que a violência seria
um aspecto central, em que a
desconsideração pela vida e pelo
outro romperiam todas as barreiras do suportável.
Nesse sentido, "Laranja Mecânica" é seu trabalho mais evidentemente profético. Mas a demência que se instala em "Dr.
Fantástico", a lógica militar de
"Glória Feita de Sangue", a assimilação pelas máquinas dos
mais selvagens instintos humanos, em "2001", deixam claro
seu ponto de vista: o mundo não
é um lugar habitável.
O máximo que podemos extrair dele são imagens e sons
-frios, quase indiferentes. O
espetáculo em Kubrick não é o
"espetáculo de cinema", que
mostra o homem como centro
do mundo. É, como em "2001",
prova quase desesperada de sua
passagem errante nesse mesmo
mundo.
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