São Paulo, Terça-feira, 09 de Março de 1999
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MEMÓRIA
O espetáculo do cinema

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

O que vemos, ao assistir a um filme de Stanley Kubrick é, geralmente, um processo de decomposição.
Essa decomposição pode ser psíquica e dramática ("Lolita"), épica ("2001"), bufa ("Dr. Fantástico"), bélica ("Glória Feita de Sangue", "Nascido para Matar"). Em qualquer circunstância, existe ali um mal-estar profundo do humano, um pessimismo tão mais incômodo quanto nesses filmes raramente o homem se transforma.
Dois casos dão bem a medida dessa maneira de olhar as coisas. Em "2001, Uma Odisséia no Espaço", tudo se inicia quando, na comunidade primitiva, o futuro homem descobre a arma e, com ela, a violência.
Essa arma, jogada para o espaço, funde-se com a imagem da nave Discovery cruzando o espaço, como a sintetizar dezenas de milhares de anos em dois segundos: tudo mudou, para que nada mudasse; a violência seria a lei humana em qualquer circunstância.
Outro caso é o de "Spartacus", filme que assumiu depois que Anthony Mann deixou a direção.
Kubrick nunca engoliu o roteiro de Dalton Trumbo, no qual o escravo Spartacus forma um exército de escravos para combater Roma, mas, mais do que isso, uma comunidade de seres iguais, dispostos a impor a igualdade: olhar excessivamente otimista, fraterno, confiante -em suma, olhar que Kubrick não poderia partilhar.
Stanley Kubrick optou por observar nesse ser ora frágil, ora fútil, antes de tudo um espetáculo. Seu rigor tornou-se famoso: 12 filmes em 45 anos, invenções tais como filmar cenas a luz de velas iluminadas unicamente por velas (em "Barry Lyndon"), o que fez com a ajuda de lentes criadas pela Nasa, ousadias como levar um ano e meio apenas para filmar as sequências com efeitos especiais de "2001".
Esse rigor fez com que sempre houvesse ao menos uma razão para que cada um de seus filmes fosse um acontecimento marcante e trouxesse uma novidade, seja tecnológica, seja de enfoque.

Espetáculo
Na sua geração, é possível dizer que o cinema reinventou-se de duas formas: o modo de produção, a busca da coloquialidade e da liberdade foram as preocupações centrais da nouvelle vague.
De certa forma, essa corrente combateu o cinema como espetáculo. Kubrick, ao contrário, trabalhou dentro de uma ótica que privilegiava o espetáculo. Mas não se tratava do espetáculo no sentido clássico, como era conhecido desde o início do século. Em Kubrick, o espetáculo era invariavelmente frio, pois não conduzia à constituição de heróis, mas ao seu esvaziamento. Não era um espetáculo no sentido clássico, mas uma reflexão sobre ele.
Talvez por isso a guerra fosse um de seus assuntos preferidos. "Glória Feita de Sangue" ou "Nascido para Matar" são filmes de guerra que se negam a mostrar o espetáculo da guerra. Por meio da guerra, no entanto, Kubrick mostra o espetáculo da insânia dos homens e sua infinita futilidade.
Assim, em vez de cultivar o cinema-espetáculo, cada filme de Stanley Kubrick nos aproximava do espetáculo do cinema. Eram formas, ritmos, ligações entre sons e imagens que pareciam preocupá-lo obsessivamente, quer fizesse um policial modesto no início da carreira, como "A Morte Passou por Perto", quer tivesse à sua disposição recursos ilimitados, como em "2001".
Embora seu cinema nunca tenha se confundido com a banalização da violência, nenhum outro cineasta percebeu, tanto quanto ele, a chegada de um mundo em que a violência seria um aspecto central, em que a desconsideração pela vida e pelo outro romperiam todas as barreiras do suportável.
Nesse sentido, "Laranja Mecânica" é seu trabalho mais evidentemente profético. Mas a demência que se instala em "Dr. Fantástico", a lógica militar de "Glória Feita de Sangue", a assimilação pelas máquinas dos mais selvagens instintos humanos, em "2001", deixam claro seu ponto de vista: o mundo não é um lugar habitável.
O máximo que podemos extrair dele são imagens e sons -frios, quase indiferentes. O espetáculo em Kubrick não é o "espetáculo de cinema", que mostra o homem como centro do mundo. É, como em "2001", prova quase desesperada de sua passagem errante nesse mesmo mundo.


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