São Paulo, sábado, 09 de abril de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Tensão religiosa impulsiona "O Silêncio"

Shusaku Endo revela um Deus distante e difícil em meditação sobre a fé que se alimenta da dúvida constante


NINGUÉM ENTENDIA ENDO PORQUE, NO SEU PAÍS, POUCOS QUERIAM ENTENDER O CRISTIANISMO


MARTIM VASQUES DA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Silêncio", do escritor japonês Shusaku Endo (1923-1996), é um livro que tinha tudo para dar errado.
Seu personagem principal, Sebastião Rodrigues, é um jesuíta português que vai ao Japão do século 17 no meio de uma intensa perseguição religiosa.
O orgulho de sua fé é tão inflado que nos faz perguntar se o marquês de Pombal (1699-1782) não tinha razão ao querer eliminar essa ordem eclesiástica da face da Terra.
Além disso, o centro do drama do personagem envolve uma palavra que atualmente ninguém consegue compreender porque ninguém quer saber a tragédia por trás dela: a apostasia.
Endo sofria do mesmo problema. Ninguém entendia os seus livros porque, no seu país, poucos queriam entender o cristianismo -uma religião que sempre foi malvista entre os japoneses.
Batizado aos 12 anos, por insistência de uma mãe agonizante, ficou com as marcas de uma fé que se alimentava de uma dúvida constante. Esta tensão impulsionou a sua obra, que, além de "O Silêncio", compõe-se de "O Samurai", "Admirável Idiota" e "Rio Profundo".
Sua simpatia não estava entre os crentes que têm a certeza da sua fé, mas sim entre os crentes que nunca pararam de questionar. Neste sentido, a apostasia -o ato de negar a fé cristã e, consequentemente, a existência do Espírito Santo, o pecado mortal, de acordo com o próprio Jesus- foi o eixo de sua problemática romanesca como católico praticante, japonês e, principalmente, escritor.

AGONIA
Em "O Silêncio", por meio de uma técnica narrativa depurada, ele mostra as agonias do padre jesuíta nos colocando em sua pele: a de apostatar o Cristo que venera ou, se não fizer isto, a de deixar que os fiéis japoneses morram pelas mãos de autoridades feudais que nada devem aos Auschwitzs e aos gulags do futuro.
Para atingir tal efeito, usa a linguagem seca, sem adornos, em um universo de sons e cheiros que perturbam as dores dos corpos e que também é indiferente aos suplícios dos mártires.
Sentimos o silêncio de Deus como um fato inevitável, que esvazia as nossas certezas, e chegamos à conclusão de que talvez o próprio Cristo faria o mesmo que Sebastião Rodrigues para salvar o seu rebanho.
Com o poder do grande romancista, Endo medita sobre um Deus distante e difícil, eficiente nos detalhes, disfarçado de silencioso e que só alimenta a fé do crente questionador com mais dois artifícios já anunciados por James Joyce (1882-1941), outro que aprendeu muito com os jesuítas: o exílio e a astúcia.

LIBERDADE INTERIOR
Porque, como diria a escritora norte-americana Flannery O'Connor (1925-1964), a literatura deve realizar essa travessia para vencer o problema do Mal.
E arremata com são Cirilo de Jerusalém: "O dragão senta-se ao largo da estrada, olhando aqueles que passam. Tenha cuidado para que ele não o devore. Nós caminhamos ao Pai, mas antes é preciso passar pelo dragão".
Quem caminha nesta estrada sabe como pode ser fascinante o olhar do monstro. Com esta obra-prima, Shusaku Endo nos avisa que, para não sermos devorados, precisamos reencontrar a muito custo a liberdade interior do verdadeiro silêncio.

MARTIM VASQUES DA CUNHA é editor da revista "Dicta&Contradicta" e doutorando pela USP

O SILÊNCIO

AUTOR Shusaku Endo
EDITORA Planeta
TRADUÇÃO Mário Vilela
QUANTO R$ 39,90 (288 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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