São Paulo, sábado, 09 de abril de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

"Às Avessas" vale por um acervo inteiro de prazeres

Joris-Karl Huysmans satirizou a estupidez burguesa em trama inovadora


SENTIA-SE COMO UM DEVASSO, EXAUSTO DE ORGIAS


ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Reaparece nas livrarias um livro que, sozinho, vale por um acervo inteiro de prazeres requintados e malsãos: "Às Avessas" (1884), de Joris-Karl Huysmans (1848-1907).
A tradução do original francês é a mesma, excelente, feita por José Paulo Paes, em 1987.
A edição inclui ainda, além do prefácio de Paes e de uma cronologia de vida e obra do autor, um texto do próprio Huysmans apresentando o livro 20 anos depois de seu lançamento.
Considera-o, com ou sem razão, como um gesto "inconsciente" do qual nasce toda a sua produção literária.
O aparato crítico se completa com uma pequena coleção de comentários escritos à época por autores como Barbey d'Aurevilly, Max Nordau, Zola, Léo Trézenik e Mallarmé, entre outros.
As obras de vários deles, aliás, haviam sido analisadas por Jean Des Esseintes, o herói libertino e letrado de "Às Avessas", cuja biblioteca de literatura contemporânea era drasticamente reduzida em favor de obras de literatura latina do período da chamada "decadência" e de escritos teológicos medievais.
A rigor, apenas Baudelaire, Poe e Mallarmé estariam à altura dos precipícios exigidos por ele.

ESTRANHO
Para entrar no espírito do livro, também é possível apelar às palavras ditas pelo narrador do livro "O Retrato de Dorian Gray" (1891), do escritor Oscar Wilde, a respeito dele: "Era o livro mais estranho que já lera".
E depois, tentando explicar o aturdimento que causara: "Era um romance sem enredo e com apenas um personagem" -constatação que dava cabo de qualquer ideia conhecida do gênero.
A bem dizer, Des Esseintes era seu próprio enredo: último descendente de uma família nobre, cuja linhagem se degenerara em casamentos consanguíneos, e antigo aluno dos jesuítas, aos quais devotava grande admiração mesmo sendo ateu, ele completava agora 30 anos. Sentia-se como um devasso impotente, exausto de orgias, mortificado pelo tédio, achacado histericamente por males imaginários.
O horror do convívio odioso com os contemporâneos, que lhe pareciam aviltar Paris com avidez e estupidez burguesas, faz com que deixe a cidade e se refugie numa casa isolada em Fontenay.
Desde então, apenas para ela tinha cuidados: paredes, tintas, móveis, pedras, bebidas, livros, pinturas, flores, perfumes... Tudo devém matéria artificiosa maniacamente pensada, catalogada, delirada.
Tal é, de resto, seu único enlevo, a fonte dos devaneios e espasmos registrados no livro por um narrador em terceira pessoa, paradoxalmente enérgico e exato em meio às deliquescências, enjoos, vômitos e desmaios do seu protagonista. Durante quase 300 páginas, divididas em 16 capítulos especializados, o narrador descreve metodicamente as alucinações eruditas, simultaneamente atrozes e cômicas de Des Esseintes. Cada um deles está reservado a um ramo do saber, engenhosamente penetrado e pervertido por sua permanente excitação sensória e intelectual, autodiagnosticada como nevrose da decadência e gatismo.
Vale dizer, como uma incontinência indiferente aos dejetos, um bizarro apego à vida em meio à imundície.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp

ÀS AVESSAS

AUTOR Joris-Karl Huysmans
EDITORA Penguin-Cia. das Letras
TRADUÇÃO José Paulo Paes
QUANTO R$ 28 (352 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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