São Paulo, Sexta-feira, 09 de Abril de 1999
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GASTRONOMIA
Olivier Anquier faz diário on the road na TV

NINA HORTA
Colunista da Folha

Na última crônica (dia 26 de março) recomendei um livro de comidas paulistas e, mea culpa, mea culpa, esqueci de dar o título da obra.
O nome é "A Culinária Paulista Tradicional nos Hotéis Senac de São Paulo", o autor é o jornalista Caloca Fernandes, e a editora é a do Senac. Last but not least, as fotos são de W.Morgenthaler.
Hoje, para não haver possibilidade de caduquices semelhantes, vamos direto ao serviço. O assunto é um programa de culinária na GNT, comandado por Olivier Anquier, o padeiro francês. Estreou no mesmo dia 26 de março, às 20h30, uma sexta feira, e tem vários outros horários também nobres e alternativos. Chama-se "O Diário de Anquier".
Gostaria de ter esperado mais alguns programas para fazer uma crítica e não simplesmente dar uma opinião, mas logo no primeiro dia me afligiu a idéia de que poderia estar deixando de pôr a boca no mundo por uma causa que me parecia boa. Geralmente são tão maçantes os programas de comida, sem perspectiva, sem graça, só ovo atrás de farinha de trigo e açúcar, uma chatice. Quando aparece coisa nova é preciso brindar.
Não me canso de fazer a comparação seguinte. As receitas de comida são como moldes de alta-costura ou de prêt-à-porter. Já imaginaram a desgraça de nunca vermos um desfile, ou roupas bonitas, uma "Vogue" recheada de modelos com o que há de novidade? Só moldes, moldes, que são as receitas dos costureiros. Os costureiros se preocupam com os moldes na hora em que vão costurar. Nós cozinheiros só devemos nos agarrar às receitas na hora de cozinhar. Precisamos de motivação, de empurrões para o fogão, e só aí vamos abrir os livros ou a Internet (www.gnt.com.br) atrás de quantos ovos ou quantas colheres de azeite.
Outra coisa que descobri é que para aprender a cozinhar nossos mestres não precisam ser grandes chefs. Quando Jeff Smith, do "Frugal Gourmet", esteve aqui fiquei surpreendida ao senti-lo arrogante e antipático e interesseiro. Pois na mesma noite ele foi ao Jô Soares. Era como se a luz da câmera ou as luzes do palco o redimissem de todos os pecadilhos. Brilhava, banhado em tolerância, credibilidade, generosidade. Era um ator. Dons bons.
O "Diário de Anquier" não tem um chef famoso, um cozinheiro de alto luxo. Tem um rapaz bonito, ambicioso, inteligente, interessado, que quer mostrar a cozinha francesa burguesa, cozinha de mãe, sem esquecer a brasileira. Com os mesmos ingredientes podemos fazer ora uma, ora outra...

Bunda frita
O primeiro programa foi delicioso e nada usual. Parece que a tônica da maioria dos programas vai ser colocar o francês on the road como um Kerouac caboclo. Lá se foi ele, no mês de outubro, quando surgem as trovoadas, e as tanajuras se alvoroçam, lá foi ele peregrino de terra batida, bermuda cor-de-rosa, à cata da tanajura, da iça, do caviar da gente taubateana, uma comida em desuso.
E no caminho tropeiros contaram histórias, relembraram as trilhas do Vale tão verde que levava a Angra e Manducaba.
Em São José do Barreiro, cidadezinha de casas azuis e coreto na praça, havia no ar uma ameaça de iça, a tal da formiga alada da qual se come a bunda frita. De boteco em boteco, passeando por cozinhas de roça de panelas esmerilhadas com areia de rio, encontra depois de muita dificuldade alguém que guarda iças na geladeira e iças vivas...
Foi uma sorte e uma confraternização. Todas as mulheres são delicadas e gentis com Anquier, mas com as iças, com as iças são monstros de maldade. Todas querem mostrar como fritar bundinhas. Pegam a tesoura e vão cortando as cabeças e as pernas dos bichos, assim a frio, sem o menor remorso. Depois fritam o corpo gorducho e o Olivier de ajudante vai deixando a farinha de mandioca cair por cima, numa farofa de iça das mais puras e autênticas.
De volta à sua cozinha, que também é rústica e de fogão de lenha, Anquier se prepara para suas francesices fáceis. E o que melhor para nos ensinar a fazer que escargots? Escargots, é claro, molengos, viscosos, e a ficha cai nas nossa cabeças. Comemos o que comemos pela geografia, pelo costume, o que dá asco lá pode não dar aqui e vice-versa. Parece ser este o espírito da coisa. Carcassonne e Indaiatuba, Dijon e Florestal, Chartres e Jundiaí, Cavaillon e Januária, Ilha Bela e Marselha, Aracaju e Paris. Parabéns, Anquier e au revoir!

E-mail: ninahort@uol.com.br


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