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CARLOS HEITOR CONY
""Não, Lourenço, sou inocente, juro-to!..."
Ano passado, contei aqui neste canto as aventuras e desventuras de uma condessa surpreendida com um frade em
equívoca situação, daí que foi
largada pelo marido em cima
de uma fogueira. Deixei-a com
as chamas purificadoras lambendo-lhe as lascivas carnes,
enquanto o conde partia para
as cruzadas a fim de resgatar os
Santos Lugares. Mais não contei porque o livro estava desfolhado, e faltava-lhe a parte final.
Para compensar, semanas
após contei a história da dogaressa, cujas bodas foram cantadas em versos, ""soluçam febris
os violinos". Não sei se prometi
contar mais e melhor sobre essas bodas. Por ora, devo responder ao leitor que me escreveu estranhando a palavra
""bucentauro" que usei. Bucentauro não é palavrão nem sinônimo de nada, a não ser de si
mesmo. Tampouco é invenção
minha. Está dicionarizada pelo mestre Aurélio, existe mesmo.
Quando o doge se casava, ia
pelo Grande Canal até o Adriático, a fim de jogar o anel nas
águas. Era o símbolo do casamento entre a Veneza dos mercadores e o mar que abria para
a Sereníssima República o caminho para o resto do mundo.
O bucentauro funcionava nas
cerimônias esponsais, e havia
até um funcionário pago para
prever as marés que lhe facilitassem o ofício. Se o camarada
bobeasse, e as ondas ficassem
ferozes, o bucentauro rolava.
Um doge paramentado ia para
o fundo do Adriático, e a dogaressa ficava viúva antes mesmo
de ser dogaressa.
Eis que algum abnegado, sabendo-me curtidor de literatura tão sadia quão emocionante, enviou-me por Sedex o primeiro fascículo de um folhetim
intitulado ""O Sedutor Maldito". É um opúsculo pequeno,
cheirando a naftalina. O remetente garante que haverá outros a caminho, ele deseja manter a periodicidade mensal com
que o avô dele os recebia.
Deleito-me com o primeiro.
Diz a introdução que, juntando-se todos os fascículos, ao final da coleção podem-se ganhar valiosos brindes, e as primeiras páginas são dedicadas a
esses brindes: um colar de pérolas, uma ""caneta estilográphica", um ""sonoro e magnífico
violão", um ""soberbo estojo
Valet, a afamada navalha das
cem barbas"- brinde que revela o interesse masculino pelos dramas narrados. Não
eram apenas as mulheres que
liam esses folhetins. Homens
barbados se emocionavam com
o romance e com a esperança
de ganhar a navalha das cem
barbas.
Mas antes de entrarmos no livro propriamente dito, há a capa. A editora do folhetim promete ""impressão primorosa em
magnífico papel (aliás, tudo ali
é magnífico) e apresentação
exterior artística e interessante, dotada de capa lindamente
colorida, assinada por ilustre
mestre das palhetas universais".
Pois esse ancestral do Victor
Burton dá-nos nesta primeira
capa uma antevisão do drama:
num adamascado leito, Flora,
com as carnes saciadas que o
véu diáfano mal esconde, está
reclinada em coxins de seda. A
cara é de agonia e dor. Ao lado,
terrível e rude, está o conde de
Monteroxo, que não está de roxo, mas de azul.
Com um olhar formidável, letal, esculhamba solenemente a
mulher, que pelo visto é a dele
mesmo. Mais ao fundo, embuçado pelo reposteiro vermelho
com franjas douradas, há o
vulto nefando de um homem.
Pela leitura do primeiro fascículo, esse homem abominável
ainda não entrou em cena, mas
tudo leva a crer que em breve
entrará, e como!
A situação é dramática: houve um casamento fracassado
por artimanhas de Sara, irmã
de Flora. Ficamos sabendo que
Flora não podia casar por causa de uma ""grave falta" -falta
esta que faz falta no folhetim,
pelo menos nesse primeiro fascículo. Espero que tão grave
culpa seja detalhada num próximo e revelador ""flashback".
Sara acaba casando com o noivo de Flora. Há um baile de
máscaras, Flora vai de colombina, deixando antever ""a maciez ebúrnea de suas pernas". O
conde de Monteroxo vai mesmo de pierrô, branco, com
pompons grenás. (Fui ao dicionário saber o que era ""ebúrnea", não era o que pensava,
mas deixa pra lá.)
No melhor da festa, quando
""todos valsavam loucamente",
uma misteriosa ""ave do paraíso" deixa na mão do pierrô
uma carta anônima, que no
fascículo não é anônima, mas
""anonyma", o que torna a carta mais eficiente. A carta contém, como todas as cartas anônimas ou anonymas que se prezam, uma infâmia.
Monteroxo acredita na infâmia. Arrebata a noiva e a leva
ao quarto mais secreto do palácio: "Desgraçada! Exijo que fales!".
"Não, Lourenço, sou inocente... juro-to!"
Neste justo momento, sai um
homem de dentro de um armário. O pierrô ficou ""cadavérico"
de raiva. O que não é vantagem, qualquer um de nós ficaria. Principalmente depois daquele pronome que não sei se
está corretamente usado, o ""juro-to" que ficou aí em cima.
Mas aí acaba o primeiro fascículo. Vou esperar pelo segundo.
Há bandalheira à vista.
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