São Paulo, Sexta-feira, 09 de Abril de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
""Não, Lourenço, sou inocente, juro-to!..."

Ano passado, contei aqui neste canto as aventuras e desventuras de uma condessa surpreendida com um frade em equívoca situação, daí que foi largada pelo marido em cima de uma fogueira. Deixei-a com as chamas purificadoras lambendo-lhe as lascivas carnes, enquanto o conde partia para as cruzadas a fim de resgatar os Santos Lugares. Mais não contei porque o livro estava desfolhado, e faltava-lhe a parte final.
Para compensar, semanas após contei a história da dogaressa, cujas bodas foram cantadas em versos, ""soluçam febris os violinos". Não sei se prometi contar mais e melhor sobre essas bodas. Por ora, devo responder ao leitor que me escreveu estranhando a palavra ""bucentauro" que usei. Bucentauro não é palavrão nem sinônimo de nada, a não ser de si mesmo. Tampouco é invenção minha. Está dicionarizada pelo mestre Aurélio, existe mesmo.
Quando o doge se casava, ia pelo Grande Canal até o Adriático, a fim de jogar o anel nas águas. Era o símbolo do casamento entre a Veneza dos mercadores e o mar que abria para a Sereníssima República o caminho para o resto do mundo.
O bucentauro funcionava nas cerimônias esponsais, e havia até um funcionário pago para prever as marés que lhe facilitassem o ofício. Se o camarada bobeasse, e as ondas ficassem ferozes, o bucentauro rolava. Um doge paramentado ia para o fundo do Adriático, e a dogaressa ficava viúva antes mesmo de ser dogaressa.
Eis que algum abnegado, sabendo-me curtidor de literatura tão sadia quão emocionante, enviou-me por Sedex o primeiro fascículo de um folhetim intitulado ""O Sedutor Maldito". É um opúsculo pequeno, cheirando a naftalina. O remetente garante que haverá outros a caminho, ele deseja manter a periodicidade mensal com que o avô dele os recebia.
Deleito-me com o primeiro. Diz a introdução que, juntando-se todos os fascículos, ao final da coleção podem-se ganhar valiosos brindes, e as primeiras páginas são dedicadas a esses brindes: um colar de pérolas, uma ""caneta estilográphica", um ""sonoro e magnífico violão", um ""soberbo estojo Valet, a afamada navalha das cem barbas"- brinde que revela o interesse masculino pelos dramas narrados. Não eram apenas as mulheres que liam esses folhetins. Homens barbados se emocionavam com o romance e com a esperança de ganhar a navalha das cem barbas.
Mas antes de entrarmos no livro propriamente dito, há a capa. A editora do folhetim promete ""impressão primorosa em magnífico papel (aliás, tudo ali é magnífico) e apresentação exterior artística e interessante, dotada de capa lindamente colorida, assinada por ilustre mestre das palhetas universais".
Pois esse ancestral do Victor Burton dá-nos nesta primeira capa uma antevisão do drama: num adamascado leito, Flora, com as carnes saciadas que o véu diáfano mal esconde, está reclinada em coxins de seda. A cara é de agonia e dor. Ao lado, terrível e rude, está o conde de Monteroxo, que não está de roxo, mas de azul.
Com um olhar formidável, letal, esculhamba solenemente a mulher, que pelo visto é a dele mesmo. Mais ao fundo, embuçado pelo reposteiro vermelho com franjas douradas, há o vulto nefando de um homem. Pela leitura do primeiro fascículo, esse homem abominável ainda não entrou em cena, mas tudo leva a crer que em breve entrará, e como!
A situação é dramática: houve um casamento fracassado por artimanhas de Sara, irmã de Flora. Ficamos sabendo que Flora não podia casar por causa de uma ""grave falta" -falta esta que faz falta no folhetim, pelo menos nesse primeiro fascículo. Espero que tão grave culpa seja detalhada num próximo e revelador ""flashback". Sara acaba casando com o noivo de Flora. Há um baile de máscaras, Flora vai de colombina, deixando antever ""a maciez ebúrnea de suas pernas". O conde de Monteroxo vai mesmo de pierrô, branco, com pompons grenás. (Fui ao dicionário saber o que era ""ebúrnea", não era o que pensava, mas deixa pra lá.)
No melhor da festa, quando ""todos valsavam loucamente", uma misteriosa ""ave do paraíso" deixa na mão do pierrô uma carta anônima, que no fascículo não é anônima, mas ""anonyma", o que torna a carta mais eficiente. A carta contém, como todas as cartas anônimas ou anonymas que se prezam, uma infâmia.
Monteroxo acredita na infâmia. Arrebata a noiva e a leva ao quarto mais secreto do palácio: "Desgraçada! Exijo que fales!".
"Não, Lourenço, sou inocente... juro-to!"
Neste justo momento, sai um homem de dentro de um armário. O pierrô ficou ""cadavérico" de raiva. O que não é vantagem, qualquer um de nós ficaria. Principalmente depois daquele pronome que não sei se está corretamente usado, o ""juro-to" que ficou aí em cima. Mas aí acaba o primeiro fascículo. Vou esperar pelo segundo. Há bandalheira à vista.


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