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BERNARDO CARVALHO
O fim do mundo (como nós o conhecemos)
Desde o início da globalização, o pensamento ocidental moderno vem sofrendo uma
série de contratempos. As ameaças a um mundo compreendido e
administrado pela razão são cada vez mais evidentes. Numa entrevista recente ao "The New
York Times", Madeleine Albright,
secretária de Estado do governo
Clinton, admitiu que não estava
preparada para essa nova realidade, não tinha sido educada para pensar sobre as relações internacionais num mundo dominado pela religião.
O Ocidente da tradição iluminista está se transformando. Em
várias áreas do saber, já não há
critérios absolutos sustentados
pela razão nem parâmetros regidos pelo bom senso. Você pode
achar que o obscurantismo vem
de fora, de integrismos religiosos
ou de modelos autoritários e devastadores, como o chinês, mas
Paul Boghossian, professor de filosofia da Universidade de Nova
York, é dos que acreditam que o
perigo vem de dentro, do próprio
pensamento ocidental -ou pelo
menos das formas que ele adotou
na chamada pós-modernidade.
Em seu pequeno livro "Fear of
Knowledge - Against Relativism
and Constructivism" (medo do
saber - contra o relativismo e o
construtivismo), lançado neste
ano pela Oxford University Press,
o filósofo (que em outros tempos,
menos ambíguos, seria imediatamente associado à direita) faz
uma diatribe contra o relativismo. Tenta demolir, por meio de
um raciocínio lógico obsessivo,
cada um dos argumentos daqueles que, de Wittgenstein a Richard
Rorty, passando por Michel Foucault, pelos estruturalistas e pela
melhor tradição da antropologia
moderna, defenderam que o saber e a verdade não são absolutos,
mas estão submetidos às contingências culturais e sociais.
Boghossian acredita que a ciência deve ser ratificada pela razão
e pela prova dos fatos. Corroborando o senso comum, ele sustenta que há verdades independentes
das circunstâncias sociais e culturais e que essa independência dos
fatos pode ser comprovada pela
compreensão racional deles. Enfaticamente contrário aos relativismos que percebem os diferentes saberes (as crenças religiosas,
os mitos indígenas e a ciência moderna, por exemplo) numa espécie de equivalência cultural, sem
hierarquia de valor, Boghossian
acredita na superioridade da
ciência ocidental para apreender
e compreender o real. E defende
esse ponto de vista absolutista como única maneira eficaz no combate à ameaça de fenômenos como o criacionismo cristão, que
oferece Deus como alternativa às
teorias evolucionistas e à idéia de
seleção natural.
Marshall Sahlins, professor de
antropologia da Universidade de
Chicago, dá uma definição simples e muito ponderada do relativismo cultural como um procedimento exclusivamente metodológico: "Não se trata do argumento
moral de que qualquer cultura ou
costume é tão bom quanto qualquer outro (...). O relativismo é a
simples prescrição de que, para
serem inteligíveis, as práticas e os
ideais de outros povos devem ser
postos no seu próprio contexto
histórico (...) em vez de serem
apreciados por nossos juízos categóricos e morais".
Não é esse o relativismo que Boghossian ataca. O que incomoda
esse filósofo "conservador" é o
pressuposto (que ele aponta em
Wittgenstein e em Rorty) de que
os próprios fatos não sejam independentes da percepção dos homens, que sejam "construídos"
pelas circunstâncias sociais e culturais de quem os vê ou os experimenta. Para Boghossian, essa
brecha aberta pelo próprio desenvolvimento do pensamento ocidental permitiria o seu esfacelamento. É uma brecha suicida, que
torna logicamente insustentável o
combate a formas de pensamento
como o criacionismo cristão, ao
dar a entender que não existem
fatos objetivos nem superioridade
da razão, mas apenas fatos subjetivos, dependentes das circunstâncias culturais e sociais.
O curioso é que os movimentos
ditos progressistas que estiveram
por trás dos chamados estudos
culturais e do multiculturalismo
nos últimos anos nas universidades americanas, e que Boghossian
também associa ao relativismo,
buscassem justamente algum tipo
de objetividade. Por exemplo, nos
estudos literários, passou a ser
considerada conservadora a análise de uma obra pelo que ela é
(pois o que ela "é" seria sempre
relativo e dependente das contingências culturais e sociais daquele
que a escreveu e daquele que a
analisa).
Se o cânone literário tinha sido
criado por burgueses ocidentais e
brancos, não havia por que continuar a submeter os alunos a ele. O
objeto de estudo deixou de ser a
obra e passou a ser a voz de quem
fala por meio da obra, de quem é
representado por ela.
Ironicamente, essa não deixa de
ser uma medida ao mesmo tempo
relativista e objetivista (contra a
subjetividade absoluta que havia
sido estabelecida pelo cânone). O
terrível é que, ao mesmo tempo
em que algo muito interessante
passa a ocorrer do ponto de vista
social (a emergência das vozes
das minorias, dos marginalizados
e dos excluídos, com conseqüências óbvias num país socialmente
tão injusto quanto o Brasil), o barateamento artístico se torna inevitável, ao menos do ponto de vista da literatura moderna, que
acaba sendo reduzida à representação (de classe, de raça, de gênero etc.). O multiculturalismo deu
aos americanos pelo menos uma
justificativa para a falta de interesse pela literatura estrangeira.
É que agora todos (hispânicos,
asiáticos etc.) estão representados
no próprio país, com a vantagem
de escreverem em inglês.
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