São Paulo, terça-feira, 09 de maio de 2006

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BERNARDO CARVALHO

O fim do mundo (como nós o conhecemos)

Desde o início da globalização, o pensamento ocidental moderno vem sofrendo uma série de contratempos. As ameaças a um mundo compreendido e administrado pela razão são cada vez mais evidentes. Numa entrevista recente ao "The New York Times", Madeleine Albright, secretária de Estado do governo Clinton, admitiu que não estava preparada para essa nova realidade, não tinha sido educada para pensar sobre as relações internacionais num mundo dominado pela religião.
O Ocidente da tradição iluminista está se transformando. Em várias áreas do saber, já não há critérios absolutos sustentados pela razão nem parâmetros regidos pelo bom senso. Você pode achar que o obscurantismo vem de fora, de integrismos religiosos ou de modelos autoritários e devastadores, como o chinês, mas Paul Boghossian, professor de filosofia da Universidade de Nova York, é dos que acreditam que o perigo vem de dentro, do próprio pensamento ocidental -ou pelo menos das formas que ele adotou na chamada pós-modernidade.
Em seu pequeno livro "Fear of Knowledge - Against Relativism and Constructivism" (medo do saber - contra o relativismo e o construtivismo), lançado neste ano pela Oxford University Press, o filósofo (que em outros tempos, menos ambíguos, seria imediatamente associado à direita) faz uma diatribe contra o relativismo. Tenta demolir, por meio de um raciocínio lógico obsessivo, cada um dos argumentos daqueles que, de Wittgenstein a Richard Rorty, passando por Michel Foucault, pelos estruturalistas e pela melhor tradição da antropologia moderna, defenderam que o saber e a verdade não são absolutos, mas estão submetidos às contingências culturais e sociais.
Boghossian acredita que a ciência deve ser ratificada pela razão e pela prova dos fatos. Corroborando o senso comum, ele sustenta que há verdades independentes das circunstâncias sociais e culturais e que essa independência dos fatos pode ser comprovada pela compreensão racional deles. Enfaticamente contrário aos relativismos que percebem os diferentes saberes (as crenças religiosas, os mitos indígenas e a ciência moderna, por exemplo) numa espécie de equivalência cultural, sem hierarquia de valor, Boghossian acredita na superioridade da ciência ocidental para apreender e compreender o real. E defende esse ponto de vista absolutista como única maneira eficaz no combate à ameaça de fenômenos como o criacionismo cristão, que oferece Deus como alternativa às teorias evolucionistas e à idéia de seleção natural.
Marshall Sahlins, professor de antropologia da Universidade de Chicago, dá uma definição simples e muito ponderada do relativismo cultural como um procedimento exclusivamente metodológico: "Não se trata do argumento moral de que qualquer cultura ou costume é tão bom quanto qualquer outro (...). O relativismo é a simples prescrição de que, para serem inteligíveis, as práticas e os ideais de outros povos devem ser postos no seu próprio contexto histórico (...) em vez de serem apreciados por nossos juízos categóricos e morais".
Não é esse o relativismo que Boghossian ataca. O que incomoda esse filósofo "conservador" é o pressuposto (que ele aponta em Wittgenstein e em Rorty) de que os próprios fatos não sejam independentes da percepção dos homens, que sejam "construídos" pelas circunstâncias sociais e culturais de quem os vê ou os experimenta. Para Boghossian, essa brecha aberta pelo próprio desenvolvimento do pensamento ocidental permitiria o seu esfacelamento. É uma brecha suicida, que torna logicamente insustentável o combate a formas de pensamento como o criacionismo cristão, ao dar a entender que não existem fatos objetivos nem superioridade da razão, mas apenas fatos subjetivos, dependentes das circunstâncias culturais e sociais.
O curioso é que os movimentos ditos progressistas que estiveram por trás dos chamados estudos culturais e do multiculturalismo nos últimos anos nas universidades americanas, e que Boghossian também associa ao relativismo, buscassem justamente algum tipo de objetividade. Por exemplo, nos estudos literários, passou a ser considerada conservadora a análise de uma obra pelo que ela é (pois o que ela "é" seria sempre relativo e dependente das contingências culturais e sociais daquele que a escreveu e daquele que a analisa).
Se o cânone literário tinha sido criado por burgueses ocidentais e brancos, não havia por que continuar a submeter os alunos a ele. O objeto de estudo deixou de ser a obra e passou a ser a voz de quem fala por meio da obra, de quem é representado por ela.
Ironicamente, essa não deixa de ser uma medida ao mesmo tempo relativista e objetivista (contra a subjetividade absoluta que havia sido estabelecida pelo cânone). O terrível é que, ao mesmo tempo em que algo muito interessante passa a ocorrer do ponto de vista social (a emergência das vozes das minorias, dos marginalizados e dos excluídos, com conseqüências óbvias num país socialmente tão injusto quanto o Brasil), o barateamento artístico se torna inevitável, ao menos do ponto de vista da literatura moderna, que acaba sendo reduzida à representação (de classe, de raça, de gênero etc.). O multiculturalismo deu aos americanos pelo menos uma justificativa para a falta de interesse pela literatura estrangeira. É que agora todos (hispânicos, asiáticos etc.) estão representados no próprio país, com a vantagem de escreverem em inglês.


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