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Obra funde tradições para retratar traumas
NELSON ASCHER
especial para a Folha
Nos poemas de José F. A. Oliver,
como condiz a alguém que, tendo
o nome que tem, escreve na língua
em que escreve, convergem duas
vertentes distintas e aparentemente opostas da poesia moderna: o
onirismo surrealizante de um espanhol como García Lorca e a lucidez descarnada de um alemão
como Bertolt Brecht.
Esse hibridismo é consciente,
programático. E isso se explicita
nas referências a poetas de ambas
as vertentes. Referências que, indo
das citações textuais à emulação
estilística, chegam não raro a nomear os próprios poetas.
Acontece que a oposição em
questão, numa leitura mais minuciosa, traduz-se em concordância
de fundo. Um exemplo disso é
que, na geração imediatamente
anterior a dos poetas acima mencionados, o onirista paradigmático era um austríaco, Georg Trakl,
enquanto o maior contemporâneo
peninsular deste (se descontarmos
o múltiplo e inqualificável Fernando Pessoa), ou seja, Antonio Machado, compunha poemas que
pendiam muito mais para o lado
desperto da lógica.
De forma semelhante, nas décadas mais recentes, embora a influência da "Generación del 27"
tenha se mostrado preponderante
no universo hispânico, enquanto
os ecos brechtianos ou mesmo de
Gottfried Benn dêem o tom característico a obras, de resto diferentes entre si, como a de Hans Magnus Enzensberger, Helmut Heissenbüttel ou os vanguardistas do
grupo de Viena, o maior poeta de
língua alemã do pós-guerra, Paul
Celan, filia-se a uma tradição que,
passando por Trakl, enraíza-se em
Hölderlin. Ao mesmo tempo, o
melhor poeta da Espanha atual,
José Angel Valente, migrou, na
metade de sua carreira, de uma
poética descarnada rumo às ressonâncias místicas embutidas no
onirismo de pesadelo do autor de
"Fuga da Morte".
O hibridismo de estilos e tradições nacionais que caracteriza os
textos de Oliver aponta menos,
portanto, para uma nova síntese
do que para a exploração de coincidências recônditas e antigas,
mas que, nas mãos de alguém que
trabalha num contexto bilíngüe,
assumem uma urgência especial.
É quem parte tanto da Península
Ibérica quanto da Europa Central
que poderá entrever mais claramente até que ponto a opção por
uma vertente específica foi condicionada por traumas históricos, a
saber, de um lado a guerra civil e o
franquismo e, do outro, a Segunda
Guerra e o nazismo.
Esses traumas se enlaçam e
emergem tematicamente nos versos de Oliver, que são capazes de
sublinhar, em "Na Ossatura de
um Dia", os paralelos entre o destino dos "gitanos" lorquianos da
Andaluzia e o dos judeus exterminados em Auschwitz. Talvez valha
a pena ressaltar que a lição de outro poeta híbrido, o peruano César
Vallejo, parece também informar
esse poema.
O que há de mais interessante na
obra discutida é, afinal, o modo
como seu autor mobiliza recursos
poéticos oriundos de duas tradições diferentes e aplicados à discussão de dois traumas históricos
distintos. Não só para demonstrar
sua convergência de base, como
também para abordar um outro
trauma que, na sua magnitude,
desborda fronteiras estilísticas
e/ou nacionais: o Holocausto.
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