São Paulo, sábado, 9 de maio de 1998

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Obra funde tradições para retratar traumas

NELSON ASCHER
especial para a Folha

Nos poemas de José F. A. Oliver, como condiz a alguém que, tendo o nome que tem, escreve na língua em que escreve, convergem duas vertentes distintas e aparentemente opostas da poesia moderna: o onirismo surrealizante de um espanhol como García Lorca e a lucidez descarnada de um alemão como Bertolt Brecht.
Esse hibridismo é consciente, programático. E isso se explicita nas referências a poetas de ambas as vertentes. Referências que, indo das citações textuais à emulação estilística, chegam não raro a nomear os próprios poetas.
Acontece que a oposição em questão, numa leitura mais minuciosa, traduz-se em concordância de fundo. Um exemplo disso é que, na geração imediatamente anterior a dos poetas acima mencionados, o onirista paradigmático era um austríaco, Georg Trakl, enquanto o maior contemporâneo peninsular deste (se descontarmos o múltiplo e inqualificável Fernando Pessoa), ou seja, Antonio Machado, compunha poemas que pendiam muito mais para o lado desperto da lógica.
De forma semelhante, nas décadas mais recentes, embora a influência da "Generación del 27" tenha se mostrado preponderante no universo hispânico, enquanto os ecos brechtianos ou mesmo de Gottfried Benn dêem o tom característico a obras, de resto diferentes entre si, como a de Hans Magnus Enzensberger, Helmut Heissenbüttel ou os vanguardistas do grupo de Viena, o maior poeta de língua alemã do pós-guerra, Paul Celan, filia-se a uma tradição que, passando por Trakl, enraíza-se em Hölderlin. Ao mesmo tempo, o melhor poeta da Espanha atual, José Angel Valente, migrou, na metade de sua carreira, de uma poética descarnada rumo às ressonâncias místicas embutidas no onirismo de pesadelo do autor de "Fuga da Morte".
O hibridismo de estilos e tradições nacionais que caracteriza os textos de Oliver aponta menos, portanto, para uma nova síntese do que para a exploração de coincidências recônditas e antigas, mas que, nas mãos de alguém que trabalha num contexto bilíngüe, assumem uma urgência especial.
É quem parte tanto da Península Ibérica quanto da Europa Central que poderá entrever mais claramente até que ponto a opção por uma vertente específica foi condicionada por traumas históricos, a saber, de um lado a guerra civil e o franquismo e, do outro, a Segunda Guerra e o nazismo.
Esses traumas se enlaçam e emergem tematicamente nos versos de Oliver, que são capazes de sublinhar, em "Na Ossatura de um Dia", os paralelos entre o destino dos "gitanos" lorquianos da Andaluzia e o dos judeus exterminados em Auschwitz. Talvez valha a pena ressaltar que a lição de outro poeta híbrido, o peruano César Vallejo, parece também informar esse poema.
O que há de mais interessante na obra discutida é, afinal, o modo como seu autor mobiliza recursos poéticos oriundos de duas tradições diferentes e aplicados à discussão de dois traumas históricos distintos. Não só para demonstrar sua convergência de base, como também para abordar um outro trauma que, na sua magnitude, desborda fronteiras estilísticas e/ou nacionais: o Holocausto.



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