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São Paulo, segunda-feira, 09 de junho de 2003

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NELSON ASCHER

O Watergate do quarto poder

A renúncia do editor-executivo do "New York Times", Howell Raines, e de seu número dois, Gerald Boyd, é um evento mais importante do que seria a queda de qualquer governo no mundo, salvo os do G8, pois o jornal é o principal símbolo da imprensa num país onde, como em nenhum outro, esta serve de contrapeso efetivo ao poder estatal. Se o chefe do Executivo norte-americano é em geral considerado o homem mais poderoso que existe, foi precisamente nos EUA que dois jovens repórteres do "Washington Post", investigando o escândalo de Watergate, acarretaram, três décadas atrás, a renúncia de Richard Nixon.
A queda, na última quinta-feira, de Raines é o Watergate do "quarto poder". Sua causa imediata foi também um escândalo, aquele que envolveu a saída de Jayson Blair, um repórter negro de 27 anos, cujas matérias fraudulentas obrigaram o jornal a publicar quatro páginas de retratações. O caso, porém, não teria consequências tão amplas se não implicasse um jornalista que, apesar de desmascarado dentro e fora do jornal até mesmo por seus superiores imediatos, seguiu contando com a confiança protetora da direção.
A atitude suicida do editor-executivo vem sendo atribuída à má consciência de um branco liberal do sul (ele é do Alabama) que teria apostado demais na "ação afirmativa ", ou seja, na promoção profissional de minorias previamente injustiçadas como os negros. A história, contudo, é mais complexa. Mesmo que se tratasse de um apego desmesurado à ação afirmativa, o modo como ele a praticou revela a intenção de insinuar que a questão racial continua uma ferida aberta nos EUA. Se bem que posição extrema e minoritária no país, ela corresponde ao ideário com o qual os intelectuais liberais e a esquerda do Partido Democrata, em cujo porta-voz o "Times " se converteu nos dois últimos anos, gostariam de reconquistar a Presidência (segundo eles) injustamente perdida.
O veredicto através do qual uma suprema corte preponderantemente conservadora (nos EUA, os juízes são apontados pelo Executivo e a maioria dos atuais foi escolhida por presidentes republicanos) encerrou, em favor de Bush, as disputadíssimas eleições presidenciais, bem como a constatação de que os votos subtraídos, à esquerda, pelo candidato dos verdes, Ralph Nader, teriam garantido ao democrata Al Gore uma maioria decisiva, assegurou que os perdedores jamais reconheceriam a legitimidade da atual administração. Tudo isso, agravado pelos rancores decorrentes da feroz campanha midiática, judicial e política movida pela direita republicana com o intuito de depor Bill Clinton, exacerbou de tal maneira a rixa entre as facções mais mobilizadas e radicais de cada um dos dois grandes partidos que hoje os liberais rejeitam Bush de uma forma tão passional quanto os conservadores fizeram com seu predecessor.
Acontece que, como Clinton descobrira e seu sucessor está percebendo, o grosso dos eleitores, sobretudo a massa de apartidários que decide muitas eleições, gravita, sem compartilhar essas paixões, em torno do centro. A orientação editorial imposta por Raines, distanciando o jornal de seu público centrista, alinhou-o com um programa explicitamente partidário e o fez, além disso, politizando o noticiário e enviesando a cobertura do que quer que fosse segundo um prisma menos de crítica dura que de oposição irredutível ao governo Bush. Um dos exemplos mais acabados desse oposicionismo caricatural é a trajetória do comentarista Paul Krugman, estrela do jornal. Antes da gestão Raines, mantendo-se nos confins de sua especialidade, a economia, ele publicava artigos perspicazes, mas, quando incentivado pelo novo chefe, começou a extrapolar os limites de sua competência, Krugman acabou arriscando prognósticos tão patentemente absurdos quanto o de que o escândalo Enron marcaria o país muito mais profundamente do que os atentados de 11 de setembro de 2001. Que um tablóide esquerdista defendesse uma tese assim seria aceitável, mas a militância ideológica que sustenta periódicos como "Nation" (de esquerda) ou "National Review" (de direita) não rende dividendos duradouros a uma publicação como o "NYT" e, como se viu, corrói-lhe rapidamente o capital de credibilidade.
O que ocorreu nos EUA seria quase inconcebível num país como a França (e, talvez, no resto da Europa continental), onde os três grandes jornais, "Le Figaro" (conservador), "Le Monde" (centrista) e "Libération" (de esquerda), frequentemente competem entre si (e com a intelectualidade nacional) para ver qual deles convencerá melhor a população de quão corretas são as decisões do governo, e onde as denúncias publicadas, em fevereiro, no livro "A Face Oculta do "Le Monde'", de Philippe Cohen e Pierre Péan, já foram, sem terem sido demasiado discutidas, devidamente arquivadas. O saldo final do episódio Raines é, portanto, positivo por duas razões. Primeiro, por colocar em evidência uma nova e vigilante instância de supervisão crítica da grande imprensa, a internet, mais especificamente a blogosfera. Os mesmos "bloggers" conservadores que obrigaram há pouco Trent Lott, o líder republicano do Senado, a abandonar o cargo por causa de suas observações racistas, não apenas denunciaram incessantemente os desmandos no "NYT" como impediram também que o presente problema fosse abafado. E, em segundo lugar, porque este "affair" reconfirma que o vigor da democracia, seja no governo ou na imprensa, advém não de acertar sempre, mas de ser capaz de expor, reconhecer e corrigir os próprios erros.



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