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NELSON ASCHER
O Watergate do quarto poder
A renúncia do editor-executivo do "New York Times", Howell Raines, e de seu número dois, Gerald Boyd, é um
evento mais importante do que
seria a queda de qualquer governo no mundo, salvo os do G8, pois
o jornal é o principal símbolo da
imprensa num país onde, como
em nenhum outro, esta serve de
contrapeso efetivo ao poder estatal. Se o chefe do Executivo norte-americano é em geral considerado o homem mais poderoso que
existe, foi precisamente nos EUA
que dois jovens repórteres do
"Washington Post", investigando
o escândalo de Watergate, acarretaram, três décadas atrás, a renúncia de Richard Nixon.
A queda, na última quinta-feira, de Raines é o Watergate do
"quarto poder". Sua causa imediata foi também um escândalo,
aquele que envolveu a saída de
Jayson Blair, um repórter negro
de 27 anos, cujas matérias fraudulentas obrigaram o jornal a publicar quatro páginas de retratações. O caso, porém, não teria
consequências tão amplas se não
implicasse um jornalista que,
apesar de desmascarado dentro e
fora do jornal até mesmo por seus
superiores imediatos, seguiu contando com a confiança protetora
da direção.
A atitude suicida do editor-executivo vem sendo atribuída à má
consciência de um branco liberal
do sul (ele é do Alabama) que teria apostado demais na "ação
afirmativa ", ou seja, na promoção profissional de minorias previamente injustiçadas como os
negros. A história, contudo, é
mais complexa. Mesmo que se
tratasse de um apego desmesurado à ação afirmativa, o modo como ele a praticou revela a intenção de insinuar que a questão racial continua uma ferida aberta
nos EUA. Se bem que posição extrema e minoritária no país, ela
corresponde ao ideário com o
qual os intelectuais liberais e a esquerda do Partido Democrata,
em cujo porta-voz o "Times " se
converteu nos dois últimos anos,
gostariam de reconquistar a Presidência (segundo eles) injustamente perdida.
O veredicto através do qual
uma suprema corte preponderantemente conservadora (nos EUA,
os juízes são apontados pelo Executivo e a maioria dos atuais foi
escolhida por presidentes republicanos) encerrou, em favor de
Bush, as disputadíssimas eleições
presidenciais, bem como a constatação de que os votos subtraídos, à esquerda, pelo candidato
dos verdes, Ralph Nader, teriam
garantido ao democrata Al Gore
uma maioria decisiva, assegurou
que os perdedores jamais reconheceriam a legitimidade da
atual administração. Tudo isso,
agravado pelos rancores decorrentes da feroz campanha midiática, judicial e política movida pela direita republicana com o intuito de depor Bill Clinton, exacerbou de tal maneira a rixa entre as facções mais mobilizadas e
radicais de cada um dos dois
grandes partidos que hoje os liberais rejeitam Bush de uma forma
tão passional quanto os conservadores fizeram com seu predecessor.
Acontece que, como Clinton
descobrira e seu sucessor está percebendo, o grosso dos eleitores, sobretudo a massa de apartidários
que decide muitas eleições, gravita, sem compartilhar essas paixões, em torno do centro. A orientação editorial imposta por Raines, distanciando o jornal de seu
público centrista, alinhou-o com
um programa explicitamente
partidário e o fez, além disso, politizando o noticiário e enviesando a cobertura do que quer que
fosse segundo um prisma menos
de crítica dura que de oposição irredutível ao governo Bush. Um
dos exemplos mais acabados desse oposicionismo caricatural é a
trajetória do comentarista Paul
Krugman, estrela do jornal. Antes
da gestão Raines, mantendo-se
nos confins de sua especialidade,
a economia, ele publicava artigos
perspicazes, mas, quando incentivado pelo novo chefe, começou a
extrapolar os limites de sua competência, Krugman acabou arriscando prognósticos tão patentemente absurdos quanto o de que
o escândalo Enron marcaria o
país muito mais profundamente
do que os atentados de 11 de setembro de 2001. Que um tablóide
esquerdista defendesse uma tese
assim seria aceitável, mas a militância ideológica que sustenta periódicos como "Nation" (de esquerda) ou "National Review"
(de direita) não rende dividendos
duradouros a uma publicação como o "NYT" e, como se viu, corrói-lhe rapidamente o capital de
credibilidade.
O que ocorreu nos EUA seria
quase inconcebível num país como a França (e, talvez, no resto
da Europa continental), onde os
três grandes jornais, "Le Figaro"
(conservador), "Le Monde" (centrista) e "Libération" (de esquerda), frequentemente competem
entre si (e com a intelectualidade
nacional) para ver qual deles convencerá melhor a população de
quão corretas são as decisões do
governo, e onde as denúncias publicadas, em fevereiro, no livro "A
Face Oculta do "Le Monde'", de
Philippe Cohen e Pierre Péan, já
foram, sem terem sido demasiado
discutidas, devidamente arquivadas. O saldo final do episódio Raines é, portanto, positivo por duas
razões. Primeiro, por colocar em
evidência uma nova e vigilante
instância de supervisão crítica da
grande imprensa, a internet, mais
especificamente a blogosfera. Os
mesmos "bloggers" conservadores
que obrigaram há pouco Trent
Lott, o líder republicano do Senado, a abandonar o cargo por causa de suas observações racistas,
não apenas denunciaram incessantemente os desmandos no
"NYT" como impediram também
que o presente problema fosse
abafado. E, em segundo lugar,
porque este "affair" reconfirma
que o vigor da democracia, seja
no governo ou na imprensa, advém não de acertar sempre, mas
de ser capaz de expor, reconhecer
e corrigir os próprios erros.
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