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Feira de atrocidades
Em "Terroristas do Milênio", J.G. Ballard descreve a revolução da classe média para elucidar questões sociopolíticas atuais
ALEXANDRE MATIAS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Apesar de não se considerar
mais um escritor de ficção científica ("A ficção científica morreu
quando o homem pisou na Lua,
em 1969"), J.G. Ballard, 74, ainda
navega pelo gênero que o consagrou. Seu mais novo livro, "Terroristas do Milênio", não cogita as
destruições apocalípticas de suas
primeiras obras, embora continue lidando com um dos principais aspectos da ficção científica:
futurologia como laboratório de
ensaio para idéias.
Em "Terroristas...", à moda de
seus livros mais recentes (como
"Super-Cannes", 2000), Ballard
cogita previsões imediatistas para
tentar elucidar charadas sociopolíticas do presente. Pelos olhos do
psicólogo desiludido David Markham, ele nos apresenta uma revolta elitista de um condomínio
fechado londrino como uma nova
versão para a revolução.
Descreve a classe média como
um novo proletariado que se rebela contra a força opressora da
mesmice inventada para mantê-la em seu lugar. Liderada pelo esguio e carismático pediatra Richard Gould, esta nova revolução
desordena a estrutura da rotina
com pequenos atentados ao dia-a-dia -em paralelo a outro tipo de
atentado, como
uma bomba que
explode no aeroporto de Heathrow logo no início
do livro. Leia a seguir a entrevista
que o escritor
concedeu à Folha.
Folha - Como em
seus últimos livros,
"Terroristas do Milênio" parece funcionar ao mesmo
tempo como uma
profecia sombria e
um sonho esperançoso. O sr. se
considera um otimista?
J.G. Ballard - Sim, mas temos de
ser realistas a respeito do mundo
em que vivemos. Acho que vivemos uma época muito perigosa. A
velha ordem mundial -o Ocidente contra o bloco soviético-
acabou, e ninguém sabe quem são
seus verdadeiros aliados. Tanto o
Islã quanto os Estados Unidos são
vistos como uma ameaça. Nossa
cultura de entretenimento deixa
as pessoas entediadas. A política,
a monarquia e a religião fracassaram. Será que o consumismo consegue manter tudo junto? Talvez o
esporte, especialmente o futebol,
seja o único cimento que previne
toda a estrutura de desabar.
"A política fracassou e não é capaz de resolver nossos problemas (...). Onde a política falha, soluções mais perigosas tendem a aparecer"
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Folha - As questões políticas estão se tornando parte da textura
do século 21? Como o sr. relaciona
isso com o fracasso dos sistemas
políticos do século passado?
Ballard - A política fracassou
completamente no mundo inteiro e não é mais capaz de resolver
nossos principais problemas
-intolerância étnica e racial, desigualdades de renda, epidemias
globais, a destruição do ambiente,
o aquecimento global, ajudar o
Terceiro Mundo e tantos outros.
Onde a política falha, soluções
mais perigosas e radicais tendem
a aparecer -como a Alemanha
nazista, uma cruzada religiosa e
racial fingindo ser um movimento político.
Folha - A classe média está ficando entediada consigo mesma?
Ballard -Acho que sim. Todas as
pessoas, mesmo as mais bem-sucedidas da classe média, têm necessidades espirituais e criativas
profundas, que não podem ser satisfeitas com uma bolsa da Gucci,
uma viagem para Miami ou um
BMW novo. Precisamos achar
significado para nossas vidas. Hoje vivemos como crianças que podem comer o quanto quiser dentro de uma fábrica de chocolates.
Folha - À medida que o novo século começa, as pessoas tornam-se
mais individualistas devido à desilusão para com as
instituições ou começam a agir de
uma forma mais
coletiva? Isso é
consciente?
Ballard - As pessoas de hoje são
muito menos individualistas do
que eram há 50
anos. Nós vivemos uma época
muito conformista. Um número
enorme de regras
e convenções sociais domina nossa vida -limites de velocidade,
como educar os filhos, quando e
onde eles devem ir à escola, como
tratar nossas mulheres e maridos,
que drogas podem ser tomadas
ou não, e por aí vai. A maior parte
das grandes decisões econômicas
de nossas vidas hoje são decididas
por companhias multinacionais,
pelo Banco Mundial e pelo FMI.
Mas as pessoas são incansáveis, e
vemos isso em crimes sem sentido; o ataque do 11 de Setembro foi
um protesto contra o modo de vida ocidental e sua cultura de entretenimento corrupta, que aplaca nosso impulso religioso.
"Mesmo as pessoas mais bem-sucedidas da classe média têm necessidades espirituais que não são satisfeitas com uma bolsa da Gucci (...)"
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Folha - Qual é o papel do terrorismo atualmente? É uma questão de
desestabilizar o status quo ou são
as Forças Armadas dos fracos?
Ballard - Ambos. Atos terroristas espetaculares, como o 11 de Setembro, podem desestabilizar nações inteiras e até mesmo o mundo, a ponto de os Estados Unidos
atacarem o Iraque como uma resposta cega e movida por emoções.
Quando as pessoas se sentem enfraquecidas, elas voltam-se para
suas emoções, como fizeram
Bush e os novos conservadores
depois do 11 de Setembro, e as
emoções são muito mais perigosas do que ambição fria.
Folha - Revolução e crise são sinônimos para a mesma coisa, vistas
por ângulos diferentes?
Ballard - A maior parte das revoluções fracassou, e aquelas que foram bem-sucedidas tenderam a
esmaecer, deixando apenas rastros ou continuaram fluindo, como rios por baixo da terra.
Folha - O entretenimento matou
o sonho?
Ballard - Nossa cultura de entretenimento atual sufoca tudo e redefine a realidade, ao, com efeito,
provar que a cultura de entretenimento é a nova realidade.
Folha - Por que sempre parecemos viver em um momento crucial
da história?
Ballard - A mudança acontece
tão rapidamente
hoje que nós podemos sentir as
variações no terreno. Mas é uma
época genuinamente desafiadora. Em contraste,
os anos 70 e 80 foram épocas mais
calmas, até a queda do Muro de
Berlim e a derrota
do comunismo
global.
Folha - Qual é a
sua opinião sobre a
era eletrônica?
Ballard - A internet é um fenômeno impressionante, com o
mesmo potencial de mudar o
mundo que o rádio e a TV. Ela já
começou a expandir a consciência humana. Tudo pode acontecer. Surgirá a primeira religião da
internet, a primeira aldeia, o primeiro movimento político. Percebo uma mudança na consciência
humana.
Folha - O sr. ainda se considera
um escritor de ficção científica?
Ballard - Não. Parei de escrever
ficção científica nos anos 60. A ficção científica morreu quando o
homem pisou na Lua, em 1969.
Mas, de muitas formas, a ficção
científica venceu, foi bem-sucedida ao atingir seus alvos e foi absorvida pelo mercado comercial.
Folha - O sr. usa a internet?
Ballard - Uso o computador da
minha namorada -adoro a poesia acidental que se encontra na
rede. No site do litoral da Califórnia, em que você pode flutuar como um pássaro por horas. Você
pode explorar silos nucleares em
desuso. Acompanhar a migração
de aves equipadas com rádio em
viagens enormes entre a Europa e
a África.
Folha - "Terroristas do Milênio"
poderia acontecer nos EUA?
Ballard - Já está acontecendo nos
EUA. Cultos religiosos estranhos,
movimentos antiaborto, hostilidade para com a evolução darwiniana. Esse grupos de protestos
são, em sua maioria, da classe média, insatisfeitos com a ordem
atual.
Folha - Com qual personagem o
sr. melhor se relaciona, Richard
Gould ou David Markham? O intelectual em dúvida é o par perfeito
para o revolucionário carismático?
Ballard - Acho que Richard
Gould está mais próximo de mim;
concordo com suas idéias, mas
não com suas ações. Como reconciliar ambas as coisas é o grande
problema.
Folha - Quais são os melhores e
piores legados do século 20?
Ballard - O melhor: liberdade individual, a dedicação da ciência
em fazer um mundo melhor e o
sentido que somos um mesmo
planeta e uma mesma família humana. O pior: a facilidade com
que um ditador
ambicioso pode
escravizar as pessoas, seja fisicamente como Stálin, ou mentalmente, como Hitler. É triste, mas
as duas coisas devem ocorrer novamente.
Folha - Como o
sr. vê o declínio da
Europa e dos Estados Unidos enquanto faróis culturais dos séculos
passados? Quem
deverá sucedê-los?
Ballard - A Europa e a América
são lugares muito diferentes. Os
Estados Unidos têm uma cultura
de entretenimento popular que é
atrativa, mas que não satisfaz, como um hambúrguer ou um pacote de chicletes. A Europa tem uma
cultura mais elitista, que não é
simples de ser compartilhada,
mas que satisfaz muito melhor.
Mas a nova supereconomia chinesa mudará tudo.
Folha - E o Brasil?
Ballard - Eu visitei o Rio em 1969
e fiquei muito surpreso com sua
vitalidade, charme e as mulheres
mais lindas do mundo. O Brasil
sempre ocupou um lugar especial
na imaginação ocidental, graças
em parte ao Rio, em parte à nossa
imagem da Amazônia e suas florestas imensas, que representam
um sonho profundo do coração
primevo da humanidade. Desejo-lhes tudo de bom!
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