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É fato, o homem está cantando e tocando cada vez melhor
NELSON MOTTA
COLUNISTA DA FOLHA
O melhor presente que
ganhei nos meus 60
anos foi o convite de
João Gilberto para assisti-lo no
Carnegie Hall, em Nova York,
há dois anos.
Nos primeiros 20 minutos,
apesar da performance perfeita, ele reclamou do som, discretamente, duas vezes. Na terceira, saiu do palco. Diante do Carnegie Hall lotado e pasmo. Só
voltou 15 minutos depois, com
o som acertado. Foi aplaudidíssimo, fez um concerto impecável, mais que perfeito, uma performance assombrosa mesmo
para quem segue seus passos e
seus sons há 45 anos pelos palcos do Brasil e do mundo.
O "New York Times" dedicou
meia página ao evento, reconhecendo que João tinha razão
sobre a qualidade do som e coragem para ter feito o que fez e
que, além de um artista genial,
tinha sido um herói, por ter
mantido a concentração e conseguido retomar o show com
uma grande performance.
O que foi corretamente visto
e recebido como uma atitude
radical de respeito ao público,
certamente no Brasil seria chamado de estrelismo e maluquice. Não entendem que, ao contrário de uma banda de rock ou
de axé, quando uma guitarra ou
um teclado desligado não são
nem notados, num concerto de
voz e violão tudo é detalhe, tudo é sutileza, tudo aparece e o
menor deslize se agiganta, é
uma prova de risco absoluto em
que João Gilberto é grande
mestre e guerreiro invencível.
Por isso, o seu rigor extremo,
por absoluta certeza da posteridade e da história, por profundo amor à arte e à beleza. E ao
Brasil.
Já tive o privilégio de ouvi-lo
muitas vezes, em Nova York,
Roma, São Paulo, Montreux,
Salvador, Rio de Janeiro, Paris,
Miami ... já escrevi dezenas de
crônicas, comentários e ensaios sobre sua arte, mas cada
vez que o ouço me surpreendo
com o seu equilíbrio e sua sutileza, acompanho fascinado a
sua suave evolução, sempre me
deslumbro com as surpresas de
seus fraseados e harmonias,
com os "clássicos secretos" da
música brasileira que ele me revela, já polidos e lapidados, em
sua forma mais pura.
É fato: o homem está cantando e tocando cada vez melhor.
Basta ouvir as suas gravações
mais recentes de "Chega de
Saudade" e "Desafinado" e
compará-las com as originais
de 1960. O seu presente é sempre melhor.
Assim como sempre encontro novidades e surpresas nos
shows de João, também tento
encontrar novas formas de falar um pouco sobre sua arte
inesgotável. Mas tudo que já escrevi sobre João foi primeiro
para ele ler e gostar, os leitores,
com todo respeito, vinham depois. Como agora, quando agradeço o presente e celebro o seu
aniversário desejando-lhe em
dobro o que ele nos dá há tanto
tempo, paz e alegria, harmonia
e beleza.
E muitos anos de vida e arte.
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