São Paulo, sexta-feira, 09 de junho de 2006

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É fato, o homem está cantando e tocando cada vez melhor

NELSON MOTTA
COLUNISTA DA FOLHA

O melhor presente que ganhei nos meus 60 anos foi o convite de João Gilberto para assisti-lo no Carnegie Hall, em Nova York, há dois anos.
Nos primeiros 20 minutos, apesar da performance perfeita, ele reclamou do som, discretamente, duas vezes. Na terceira, saiu do palco. Diante do Carnegie Hall lotado e pasmo. Só voltou 15 minutos depois, com o som acertado. Foi aplaudidíssimo, fez um concerto impecável, mais que perfeito, uma performance assombrosa mesmo para quem segue seus passos e seus sons há 45 anos pelos palcos do Brasil e do mundo.
O "New York Times" dedicou meia página ao evento, reconhecendo que João tinha razão sobre a qualidade do som e coragem para ter feito o que fez e que, além de um artista genial, tinha sido um herói, por ter mantido a concentração e conseguido retomar o show com uma grande performance.
O que foi corretamente visto e recebido como uma atitude radical de respeito ao público, certamente no Brasil seria chamado de estrelismo e maluquice. Não entendem que, ao contrário de uma banda de rock ou de axé, quando uma guitarra ou um teclado desligado não são nem notados, num concerto de voz e violão tudo é detalhe, tudo é sutileza, tudo aparece e o menor deslize se agiganta, é uma prova de risco absoluto em que João Gilberto é grande mestre e guerreiro invencível. Por isso, o seu rigor extremo, por absoluta certeza da posteridade e da história, por profundo amor à arte e à beleza. E ao Brasil.
Já tive o privilégio de ouvi-lo muitas vezes, em Nova York, Roma, São Paulo, Montreux, Salvador, Rio de Janeiro, Paris, Miami ... já escrevi dezenas de crônicas, comentários e ensaios sobre sua arte, mas cada vez que o ouço me surpreendo com o seu equilíbrio e sua sutileza, acompanho fascinado a sua suave evolução, sempre me deslumbro com as surpresas de seus fraseados e harmonias, com os "clássicos secretos" da música brasileira que ele me revela, já polidos e lapidados, em sua forma mais pura.
É fato: o homem está cantando e tocando cada vez melhor. Basta ouvir as suas gravações mais recentes de "Chega de Saudade" e "Desafinado" e compará-las com as originais de 1960. O seu presente é sempre melhor.
Assim como sempre encontro novidades e surpresas nos shows de João, também tento encontrar novas formas de falar um pouco sobre sua arte inesgotável. Mas tudo que já escrevi sobre João foi primeiro para ele ler e gostar, os leitores, com todo respeito, vinham depois. Como agora, quando agradeço o presente e celebro o seu aniversário desejando-lhe em dobro o que ele nos dá há tanto tempo, paz e alegria, harmonia e beleza.
E muitos anos de vida e arte.


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