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Crítica/romance
David Grossman usa experiência do horror para redefinir o mundo
Monumental romance "Ver: Amor", do escritor israelense, ganha nova edição
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O oficial da SS Felix Landau era um homem
sensível. Assim, logo
percebeu o talento artístico de
um judeu que contratou para
pintar uns murais para seu filho. Mas Landau matou um
dentista judeu, favorito de outro membro da Gestapo, Karl
Günther. Em retaliação, Günther atirou no artista de Landau. "Você matou meu judeu,
eu matei o seu", ele teria dito.
Essa é uma versão de um fato
ocorrido em 1942, na cidade
polonesa de Drohobycz. O artista de Landau era Bruno
Schulz, hoje considerado um
dos mais importantes escritores do modernismo polonês. A
banalidade da morte de Schulz,
em contraste com a força de
seus escritos, motivou o romancista israelense David
Grossman a redigir "Ver:
Amor". Trata-se de relançamento de uma tradução de
1993, agora revista.
Embora a figura de Schulz
presida apenas o segundo tomo
do monumental romance de
Grossman (dividido em quatro
seções), percebe-se por toda
parte o desejo quase enlouquecido -à moda do polonês- de
discernir a verdade através do
manto do absurdo cotidiano.
Diga-se logo que "Ver: Amor"
é um romance-rio difícil de
classificar e de analisar, dada a
imensidão dos temas e histórias abordados -e que, em inúmeros momentos, roça a genialidade. Começa de modo simples, contando a história de um
menino de nove anos, Momik.
Seus pais, sobreviventes dos
campos de concentração, nada
lhe contaram sobre a "terra de
lá". O garoto cria uma mitologia
pessoal sobre o que teria sido a
"besta nazista".
Impressiona-o a frase de
uma vizinha, que diz que a besta poderia provir de qualquer
animal, bastando dar-lhe "tratamento e comida adequados".
Para invocá-la, tranca o tio-avô
Anshel, que passa os dias balbuciando frases incompreensíveis, num porão onde guarda
uns animais enjaulados.
A experiência quase enlouquece o garoto, mas ele supera
a crise e torna-se escritor. É
Momik que narra a segunda
parte da história, sobre Schulz.
Sua trajetória se mescla à do
polonês, que, em sua versão,
não morreu em Drohobycz,
mas escapou pelo mar e, na
companhia de seres aquáticos,
cruzou os oceanos.
Na terceira parte do romance, relata-se o embate entre
Neigel, comandante do campo
de concentração, e Anshel, que
se descobre incapaz de ser morto. Tece-se um acordo entre o
nazista e o judeu. O último contaria histórias ao primeiro, enquanto este, ao cabo de cada
noite, tentaria matar sua Sherazade às avessas. As histórias
de Anshel, bem como o destino
de outros personagens do romance, entrelaçam-se na última parte, constituída ao modo
de verbetes enciclopédicos (daí
a configuração do título).
Contar o livro dessa maneira
talvez permita ao leitor perceber o contorno da obra, mas
pouco revela sobre seu conteúdo, porque, como sugerimos,
ela trata de temas vastos, como
a morte e o amor, a arte e a barbárie, e a raiz da existência.
Shulz dizia que a realidade é a
sombra da palavra. A filosofia
seria no fundo filologia, "a exploração criativa da palavra".
Como Schulz -e com a mesma
vitalidade-, Grossman procura, com seu texto, redefinir o
mundo. Sua originalidade reside no fato de que essa redefinição parte da experiência do
horror.
VER: AMOR
Autor: David Grossman
Tradução: Nancy Rosenchan
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 62 (536 págs.)
Avaliação: ótimo
Leia trecho
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