São Paulo, sábado, 09 de junho de 2007

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Crítica/romance

David Grossman usa experiência do horror para redefinir o mundo

Monumental romance "Ver: Amor", do escritor israelense, ganha nova edição

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O oficial da SS Felix Landau era um homem sensível. Assim, logo percebeu o talento artístico de um judeu que contratou para pintar uns murais para seu filho. Mas Landau matou um dentista judeu, favorito de outro membro da Gestapo, Karl Günther. Em retaliação, Günther atirou no artista de Landau. "Você matou meu judeu, eu matei o seu", ele teria dito.
Essa é uma versão de um fato ocorrido em 1942, na cidade polonesa de Drohobycz. O artista de Landau era Bruno Schulz, hoje considerado um dos mais importantes escritores do modernismo polonês. A banalidade da morte de Schulz, em contraste com a força de seus escritos, motivou o romancista israelense David Grossman a redigir "Ver: Amor". Trata-se de relançamento de uma tradução de 1993, agora revista.
Embora a figura de Schulz presida apenas o segundo tomo do monumental romance de Grossman (dividido em quatro seções), percebe-se por toda parte o desejo quase enlouquecido -à moda do polonês- de discernir a verdade através do manto do absurdo cotidiano.
Diga-se logo que "Ver: Amor" é um romance-rio difícil de classificar e de analisar, dada a imensidão dos temas e histórias abordados -e que, em inúmeros momentos, roça a genialidade. Começa de modo simples, contando a história de um menino de nove anos, Momik.
Seus pais, sobreviventes dos campos de concentração, nada lhe contaram sobre a "terra de lá". O garoto cria uma mitologia pessoal sobre o que teria sido a "besta nazista".
Impressiona-o a frase de uma vizinha, que diz que a besta poderia provir de qualquer animal, bastando dar-lhe "tratamento e comida adequados". Para invocá-la, tranca o tio-avô Anshel, que passa os dias balbuciando frases incompreensíveis, num porão onde guarda uns animais enjaulados.
A experiência quase enlouquece o garoto, mas ele supera a crise e torna-se escritor. É Momik que narra a segunda parte da história, sobre Schulz.
Sua trajetória se mescla à do polonês, que, em sua versão, não morreu em Drohobycz, mas escapou pelo mar e, na companhia de seres aquáticos, cruzou os oceanos.
Na terceira parte do romance, relata-se o embate entre Neigel, comandante do campo de concentração, e Anshel, que se descobre incapaz de ser morto. Tece-se um acordo entre o nazista e o judeu. O último contaria histórias ao primeiro, enquanto este, ao cabo de cada noite, tentaria matar sua Sherazade às avessas. As histórias de Anshel, bem como o destino de outros personagens do romance, entrelaçam-se na última parte, constituída ao modo de verbetes enciclopédicos (daí a configuração do título).
Contar o livro dessa maneira talvez permita ao leitor perceber o contorno da obra, mas pouco revela sobre seu conteúdo, porque, como sugerimos, ela trata de temas vastos, como a morte e o amor, a arte e a barbárie, e a raiz da existência.
Shulz dizia que a realidade é a sombra da palavra. A filosofia seria no fundo filologia, "a exploração criativa da palavra".
Como Schulz -e com a mesma vitalidade-, Grossman procura, com seu texto, redefinir o mundo. Sua originalidade reside no fato de que essa redefinição parte da experiência do horror.


VER: AMOR
Autor:
David Grossman
Tradução: Nancy Rosenchan
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 62 (536 págs.)
Avaliação: ótimo
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