São Paulo, sábado, 09 de julho de 2005

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História em transição


Brasileiro Evaldo Cabral de Mello fala sobre "Dom Quixote e sua Espanha" em Parati

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

O inglês de acento britânico tem sido uma espécie da língua oficial da Flip (Festa Literária Internacional de Parati) desde a primeira edição do evento (2003), por conta do grande número de autores britânicos e norte-americanos que passam por lá.
Essa característica constante, porém, será interrompida hoje, às 17h, quando Evaldo Cabral de Mello, um dos mais importantes historiadores do Brasil, evocar o maior dos autores de língua espanhola, Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), em sua palestra "Dom Quixote e sua Espanha".
Leia abaixo trechos da entrevista que o autor de "Rubro Veio" e "A Fronda dos Mazombos" -e também colunista da Folha-, concedeu, por telefone, do Rio.

Folha - "Dom Quixote" é tido como marco de uma transição na história. O sr. concorda?
Evaldo Cabral de Mello -
Não. Todo momento na história é de transição. A história é transição e crise. O que ocorre é que, quando "Dom Quixote" foi lançado, a Espanha estava deixando de ser uma potência européia. E estava perdendo a ilusão a respeito de sua força. É mais ou menos o que acontece com os EUA de George W. Bush, querendo implantar o regime democrático em todo o mundo. Depois de um certo tempo matando e vendo morrer, eles vão chegar à conclusão de que não se pode impor a democracia.
Foi um pouco o que aconteceu com a Espanha nos séculos 16 e 17. O país quis espalhar seus valores pela Europa e acabou derrotado, pagando um preço caro por muito tempo. Pagou até Franco.

Folha - Do ponto de vista do historiador, por que "Dom Quixote" se mantém importante?
Cabral de Mello -
Porque há um parentesco, uma afinidade perturbadora, entre a ação da Espanha na Europa da época com o comportamento do Quixote. A Espanha dos séculos 16 e 17 foi quixotesca, ao querer impor a uniformidade religiosa, combater o protestantismo e forçar uma hegemonia dinástica ao continente. Esses dois objetivos já haviam fracassado na altura da redação do romance. Estava claro, por volta de 1605, quando publicada a primeira parte do livro, que a Espanha metia a cabeça na parede.

Folha - "Dom Quixote" influenciou a literatura brasileira?
Cabral de Mello -
A única figura da literatura brasileira que a crítica literária já aproximou do Quixote foi um personagem de José Lins do Rego (1901-1957) em "Fogo Morto" (1943), o capitão Vitorino Carneiro da Cunha.

Folha - E por quê?
Cabral de Mello -
Foi um personagem real, parte das reminiscências da infância de Zé Lins, mas que, na sua obra, assume um ar de Dom Quixote e tem aspectos formais que lembram o personagem. Está sempre sobre um cavalo em petição de miséria, como o Rocinante, e também é perseguido pelo ridículo no lugar onde vive.

Folha - O adjetivo quixotesco, por sua vez, também foi bastante banalizado ao longo do tempo. O que o sr. acha disso?
Cabral de Mello -
Creio que ocorreu uma utilização abusiva. Porque o comportamento quixotesco, se analisado particularmente, é uma coisa muito concreta em termos de significado. Mas esse tipo de palavra não escapa de ser usado de maneira improcedente.
Por exemplo, todo mundo fala hoje a palavra "carismático". Entretanto, provavelmente, ninguém sabe qual é a origem da palavra e quando ela foi adotada sociologicamente por Max Weber (1864-1920). É como acontece com "infra-estrutura", "marxismo" ou todo o vocabulário da psicanálise. Saem do contexto.

Folha - Recentemente, o peruano Vargas Llosa levantou uma tese polêmica, a de que Cervantes teria sido um precursor do liberalismo com a criação do Quixote. O que acha disso?
Cabral de Mello -
Essas pessoas querem modernizar a ferro e a fogo o "Quixote", isso não faz sentido. Essas tentativas de mostrá-lo como um arauto de novos tempos é uma leitura completamente anacrônica. Além do que, Dom Quixote era um regressista.
Todo projeto de ação até a Revolução Francesa na Europa eram projetos de regressão. O Quixote não queria mudar o mundo, e sim corrigir injustiças pontuais. Querer fazer do Dom Quixote um revolucionário é uma brincadeira.


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