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História em transição
Brasileiro Evaldo Cabral de Mello fala sobre "Dom Quixote e sua Espanha" em Parati
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SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
O inglês de acento britânico tem
sido uma espécie da língua oficial
da Flip (Festa Literária Internacional de Parati) desde a primeira
edição do evento (2003), por conta do grande número de autores
britânicos e norte-americanos
que passam por lá.
Essa característica constante,
porém, será interrompida hoje, às
17h, quando Evaldo Cabral de
Mello, um dos mais importantes
historiadores do Brasil, evocar o
maior dos autores de língua espanhola, Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), em sua palestra
"Dom Quixote e sua Espanha".
Leia abaixo trechos da entrevista que o autor de "Rubro Veio" e
"A Fronda dos Mazombos" -e
também colunista da Folha-,
concedeu, por telefone, do Rio.
Folha - "Dom Quixote" é tido como marco de uma transição na história. O sr. concorda?
Evaldo Cabral de Mello - Não. Todo momento na história é de transição. A história é transição e crise. O que ocorre é que, quando
"Dom Quixote" foi lançado, a Espanha estava deixando de ser
uma potência européia. E estava
perdendo a ilusão a respeito de
sua força. É mais ou menos o que
acontece com os EUA de George
W. Bush, querendo implantar o
regime democrático em todo o
mundo. Depois de um certo tempo matando e vendo morrer, eles
vão chegar à conclusão de que
não se pode impor a democracia.
Foi um pouco o que aconteceu
com a Espanha nos séculos 16 e
17. O país quis espalhar seus valores pela Europa e acabou derrotado, pagando um preço caro por
muito tempo. Pagou até Franco.
Folha - Do ponto de vista do historiador, por que "Dom Quixote"
se mantém importante?
Cabral de Mello - Porque há um
parentesco, uma afinidade perturbadora, entre a ação da Espanha na Europa da época com o
comportamento do Quixote. A
Espanha dos séculos 16 e 17 foi
quixotesca, ao querer impor a
uniformidade religiosa, combater
o protestantismo e forçar uma hegemonia dinástica ao continente.
Esses dois objetivos já haviam fracassado na altura da redação do
romance. Estava claro, por volta
de 1605, quando publicada a primeira parte do livro, que a Espanha metia a cabeça na parede.
Folha - "Dom Quixote" influenciou a literatura brasileira?
Cabral de Mello - A única figura
da literatura brasileira que a crítica literária já aproximou do Quixote foi um personagem de José
Lins do Rego (1901-1957) em "Fogo Morto" (1943), o capitão Vitorino Carneiro da Cunha.
Folha - E por quê?
Cabral de Mello - Foi um personagem real, parte das reminiscências da infância de Zé Lins, mas
que, na sua obra, assume um ar de
Dom Quixote e tem aspectos formais que lembram o personagem.
Está sempre sobre um cavalo em
petição de miséria, como o Rocinante, e também é perseguido pelo ridículo no lugar onde vive.
Folha - O adjetivo quixotesco, por
sua vez, também foi bastante banalizado ao longo do tempo. O que
o sr. acha disso?
Cabral de Mello - Creio que ocorreu uma utilização abusiva. Porque o comportamento quixotesco, se analisado particularmente,
é uma coisa muito concreta em
termos de significado. Mas esse tipo de palavra não escapa de ser
usado de maneira improcedente.
Por exemplo, todo mundo fala
hoje a palavra "carismático". Entretanto, provavelmente, ninguém sabe qual é a origem da palavra e quando ela foi adotada sociologicamente por Max Weber
(1864-1920). É como acontece
com "infra-estrutura", "marxismo" ou todo o vocabulário da psicanálise. Saem do contexto.
Folha - Recentemente, o peruano
Vargas Llosa levantou uma tese polêmica, a de que Cervantes teria sido um precursor do liberalismo
com a criação do Quixote. O que
acha disso?
Cabral de Mello - Essas pessoas
querem modernizar a ferro e a fogo o "Quixote", isso não faz sentido. Essas tentativas de mostrá-lo
como um arauto de novos tempos
é uma leitura completamente
anacrônica. Além do que, Dom
Quixote era um regressista.
Todo projeto de ação até a Revolução Francesa na Europa eram
projetos de regressão. O Quixote
não queria mudar o mundo, e sim
corrigir injustiças pontuais. Querer fazer do Dom Quixote um revolucionário é uma brincadeira.
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