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LIVRO/CRÍTICA
Vila-Matas destrói cacoetes de estilo
MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA
A idéia da literatura como
doença não é exatamente
uma novidade na ficção. Personagens como Dom Quixote e Ema
Bovary têm seus destinos arruinados por enxergarem a vida como
uma extensão idealizada do que
leram: aventuras de cavalaria, no
primeiro caso, e histórias românticas, no segundo. A diferença do
protagonista de "O Mal de Montano", romance que deu ao catalão Enrique Vila-Matas os prêmios Heralde e Médicis, é a consciência do próprio desvio: crítico
que inicia a trama numa viagem
de visita ao filho, Rosário Girondo
se angustia ao perceber que seus
diálogos são citações, seus atos
imitam passagens de clássicos e as
pessoas ao seu redor lembram
criaturas como Hamlet e o Conde
Drácula. A "intoxicação literária"
pontua seu relacionamento com a
mulher, Rosa, e o faz ir a lugares
como Chile, Açores e Budapeste.
Impossível não ver no enredo
um complemento de "Bartleby e
Companhia", a obra-prima de Vila-Matas sobre escritores que desistiram do ofício. Se esta era uma
história sobre a "elegância de se
calar", como o autor já disse em
entrevistas, "O Mal de Montano"
também tem como ponto de partida o silêncio. Não só porque traz
um personagem em crise por ter
publicado um livro semelhante a
"Bartleby", mas porque o tormento de Girondo é causado por
um excesso de vozes. Todas as
convenções já foram usadas, todas as fórmulas já foram descobertas, todas as rupturas foram já
promovidas no eterno presente
da ficção universal. Quem as sussurra são outros escritores, claro,
que em sua época viveram os dilemas de uma atividade desde sempre tirânica e ingrata. Por que sacrificar a vida em nome dela? Que
sentido ainda faz praticá-la hoje?
Como todo artista que de alguma maneira bebeu nas fontes do
pós-modernismo, Vila-Matas
prefere a ironia das perguntas à
solenidade das respostas. Sua vítima predileta são as supostas leis
de certa ficção contemporânea.
Brincando com os cacoetes estilísticos do romance, do ensaio, do
diário, da enciclopédia e da autobiografia, "O Mal de Montano"
trata de destruí-las uma a uma: os
personagens mentem, os fatos se
contradizem, as certezas do leitor
acabam se revelando falsas. Rosário Girondo não fala apenas de
como é difícil ser original: ele demonstra na prática, e a sua narrativa é o maior exemplo, como se
tornou fácil criar ilusões com a
linguagem.
Contraditoriamente, à medida
que o romance se livra do andamento algo maneirista de seu início, essas ilusões ganham encantamento autônomo. Aí está o talento de Vila-Matas: com uma
prosa cheia de humor, transformar o que seria um mero estudo
sobre os limites da criação artística numa prova de suas possibilidades ainda vivas. Como o próprio Girondo descobre, respirar
literatura pode ser um ato de resistência em um mundo cada vez
menos literário. Ato que traz dentro de si a cura para quem escreve
sob o espectro do conformismo.
Michel Laub é autor dos romances "Música Anterior" e "Longe da Água", ambos da Companhia das Letras.
O Mal de Montano
Autor: Enrique Vila-Matas
Tradução: Celso Paciornik
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 49 (328 págs.)
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