São Paulo, sábado, 09 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Belém-Manaus: poesia e prosa ao norte

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Passando ao largo dos regionalismos nordestino e sulista, ao largo das dobradinhas e rixas do eixo Rio-São Paulo, a desmesurada paisagem amazônica ainda segue em busca de uma cidadania literária à altura do papel mítico que a floresta e o rio desempenham no imaginário contemporâneo, brasileiro e planetário. Para além do interesse antropológico pelo mosaico de narrativas e lendas que acompanham a vida das populações ribeirinhas -os "tricksters", botos e cobras-grandes em profusão, regidos pelo pêndulo das cheias e das vazantes-, os nomes do Norte chegam esparsos, insulares, em meio à enxurrada dos relatos de viajantes.
O Brasil e sua literatura ainda não fizeram plena justiça ao pulmão do mundo: se os alemães se reconhecem na Floresta Negra, lugar da paisagem onde inscrevem suas cicatrizes (vejam-se as telas de Anselm Kiefer, por exemplo, em que os grandes nomes do romantismo alemão, pintados em vermelho, ocupam o lugar das folhas das árvores seculares, manchados pela violência sangrenta do nacional-socialismo), o mesmo ainda não vale para o nosso inferno verde.
Os grandes centros herdeiros do fausto perdido da borracha, as cidades de Belém e Manaus, gravitam em torno do próprio eixo. A reedição recente da crítica do piauiense de berço, mas belenense de formação, Mário Faustino, dão pistas do jornalismo cultural respeitável que o suplemento da "Folha do Norte" sustentava nas décadas do pós-guerra. Contribuíam nomes de expressão nacional, como Clarice Lispector ou Drummond, e abriam espaço a críticos como o paraense Benedito Nunes, que logo alcançariam prestígio nacional.
O volume recém-publicado, "Mário Faustino - Uma Biografia", de Lília Silvestre Chaves (Secretaria de Cultura do Pará), recompõe minuciosamente a dinâmica própria que o mundo da cultura alçava nos casarões de Belém, de altíssimos pés direitos. Hoje, quase ignorados para além do âmbito local, destacam-se os poetas Age de Carvalho, no exílio suíço voluntário, e Max Martins, cujos "Poemas Reunidos: 1952-2001" (Ed. UFPA) permanecem escondidos pela sofrível distribuição de editoras universitárias.
O sul tem Simões Lopes Neto e Érico Veríssimo; o Nordeste, Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego, mas se um viajante incerto buscar uma obra que lhe apresente a Amazônia, a quem deveria ser apresentado? A prosa intimista, densa em conflitos familiares, trazendo as marcas da história recente de Manaus nas consciências divididas dos "Dois Irmãos", de Milton Hatoum (Companhia das Letras), certamente inclui uma busca pelo sentido formador daquele espaço. Também do corte satírico dos folhetins de Márcio Souza, como "Galvez, Imperador do Acre" (Record) ou "A Resistível Ascensão de Boto Tucuxi" (Marco Zero), se aprende sobre a invasão predatória dos oportunistas e aproveitadores saqueando seu quinhão dos recursos abundantes.
Mas a vocação para a saga, recompondo as trajetórias individuais pelo traçado intrincado das veias aquáticas que conferem ao tempo e às distâncias um significado amazônico próprio, talvez esteja melhor representada na obra prolífica de um romancista mais falado do que lido, Dalcídio Jurandir (1909-1979), que em nove volumes acompanha o percurso que leva o ribeirinho Alfredo à cidade grande, no caso Belém, e apanha esse misto de elegância orgulhosa na decadência e auto-suficiência agônica que caracteriza o espírito local. Da vida em Marajó, registrada em "Chove sobre os Campos de Cachoeira" (1941), passando pelo mapeamento da hierarquia dos espaços e tipos urbanos em "Belém do Grão Pará" (1960), até a volta sob nova perspectiva, ingenuidade desfeita, à paisagem marajoara -"Ponte do Galo" (1971), por exemplo-, descrição panorâmica e romance de formação casam-se à perfeição, substituindo a abstração da Amazônia legal por um retrato encarnado de uma região ainda desconhecida.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Bruxaria e marketing: Segredo cerca lançamento de Harry Potter
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.