São Paulo, sábado, 09 de julho de 2005

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TEATRO/CRÍTICA

Oficina choca e agrada em Moscou

MARIO VITOR SANTOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE MOSCOU

Na terra de Tchecov, Dostoiévski e Stanislavski, a companhia do Teatro Oficina Uzyna Uzona debutou na quinta-feira com sua versão para palco italiano de "Boca de Ouro", montagem da "tragédia carioca" de Nelson Rodrigues relida como "tragicomediorgya" pelo diretor José Celso Martinez Corrêa.
O desafio era grande: encarar o tradicional teatro Puchkin -escolhido por Zé Celso- com seus tapetes e imenso lustre sobre a nave monumental. Havia ainda o peso do teatro russo e do público habituado a montagens tradicionais. O teatro é o futebol da Rússia. O Oficina preparou-se: o palco foi coberto por imensa "língua" plástica vermelha que vazava por uma escada pelo corredor central da platéia. As laterais do palco foram expostas até mostrar partes de cenários de outras produções, as entranhas enfim. No fundo, eram projetadas imagens.
Dentro desse teatro-boca, lançou-se o grupo numa montagem-manifesto, intencionalmente provocativa da história, da vida do marginal de Madureira. Abandonado numa pia de gafieira ao nascer, Boca se torna banqueiro do bicho, manda extrair todos os seus dentes para colocar uma dentadura de ouro. Todo de ouro é também o caixão que ele está construindo para si.
Antes do início, os atores, alguns nus, circulam sambando entre o público. Lá dentro, o espetáculo começa numa cena em que Boca (Marcelo Drummond) nasce de uma entidade-mãe gorda e de ouro, com uma máscara sorridente. Drummond e os atores Haroldo Ferrari (Leleco), Camila Mota (Celeste) e Sylvia Prado (dona Guigui) circulam às vezes pelados. Sentam-se no colo dos russos, deitam sobre eles, agarram o pescoço, saltam sobre as fileiras, dançam, brincam e provocam.
A platéia reage entre o choque estático e o riso nervoso. Não se sabe por que estão paralisados, se por terem que manter a atenção no placar com as legendas em russo das falas ou se por choque. Há um sentido de alarme. Os atores podem surgir de qualquer entrada, de trás, de cima e até do palco.
Alguns até topam dançar com os atores. Ninguém, porém, se dispõe a participar do concurso de peitinhos promovido por Boca, apesar do intenso estímulo dos atores. Uma porteira do teatro quase cede, mas recua e mostra o crachá. Zé Celso, como um Maiakóvski redivivo, parece invocar a sufocada arte revolucionária russa dos anos 20 e intervém a partir de uma das frisas superiores.
Não poderia haver melhor local para essa manifestação criativa de aparente caos. O teatro russo, com suas escolas tradicionais, ocupa o centro do cânone mundial fortalecido pelo conservadorismo na política, economia e cultura. Contra isso, num festival oficial, o Oficina instaura um novo espetáculo, em que o gosto dos novos ricos incorporados ao mercado é afrontado, bem no estilo de Nelson Rodrigues, por uma arte que abençoa o improviso, o cancro social, o sangue das mucosas e a proximidade dos dejetos.
Uma estética que, ao estilo de Artaud e Genet, propõe a transformação da arte em órgão, sua submissão a um marginal e conversão em boca. O herói toma a direção, sem concessão aos saberes consagrados e à estética do dentista (Zé Celso) que diz a Boca que seus dentes estão perfeitos. Nelson desmoralizava a crítica ontem e atinge também os especialistas em teatro de hoje.
Boca não aceita nada que não seja corrompido e invertido. Oferece seu corpo em sacrifício em defesa de uma arte que diversamente da de Dostoiévski, a quem Nelson freqüentemente é associado, não julga. Essa arte é jornalística, como o trabalho de Nelson Rodrigues. O real, o que acontece, é mitificado. O imanente transcende. Nelson dizia que Zé Celso dava muita importância ao público. Ontem, parte da platéia (a preços variando entre R$ 30 e R$ 150), chocada e cansada, saiu antes do final em que o elenco desfilava com camisas tricolores, ao som do hino da outra paixão rodrigueana. Outra parte, de pé, aplaudia entusiasmada. Com "Boca de Ouro", Nelson Rodrigues e Zé Celso tiram o grotesco da margem e o colocam no centro da arte do teatro.


O jornalista Mario Vitor Santos viaja a Moscou a convite da organização do 6º Festival Internacional de Teatro Tchecov e da Funarte


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