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TEATRO/CRÍTICA
Oficina choca e agrada em Moscou
MARIO VITOR SANTOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE MOSCOU
Na terra de Tchecov, Dostoiévski e Stanislavski, a
companhia do Teatro Oficina
Uzyna Uzona debutou na quinta-feira com sua versão para palco
italiano de "Boca de Ouro", montagem da "tragédia carioca" de
Nelson Rodrigues relida como
"tragicomediorgya" pelo diretor
José Celso Martinez Corrêa.
O desafio era grande: encarar o
tradicional teatro Puchkin -escolhido por Zé Celso- com seus
tapetes e imenso lustre sobre a nave monumental. Havia ainda o
peso do teatro russo e do público
habituado a montagens tradicionais. O teatro é o futebol da Rússia. O Oficina preparou-se: o palco foi coberto por imensa "língua" plástica vermelha que vazava por uma escada pelo corredor
central da platéia. As laterais do
palco foram expostas até mostrar
partes de cenários de outras produções, as entranhas enfim. No
fundo, eram projetadas imagens.
Dentro desse teatro-boca, lançou-se o grupo numa montagem-manifesto, intencionalmente provocativa da história, da vida do
marginal de Madureira. Abandonado numa pia de gafieira ao nascer, Boca se torna banqueiro do
bicho, manda extrair todos os
seus dentes para colocar uma
dentadura de ouro. Todo de ouro
é também o caixão que ele está
construindo para si.
Antes do início, os atores, alguns nus, circulam sambando entre o público. Lá dentro, o espetáculo começa numa cena em que
Boca (Marcelo Drummond) nasce de uma entidade-mãe gorda e
de ouro, com uma máscara sorridente. Drummond e os atores Haroldo Ferrari (Leleco), Camila
Mota (Celeste) e Sylvia Prado (dona Guigui) circulam às vezes pelados. Sentam-se no colo dos russos, deitam sobre eles, agarram o
pescoço, saltam sobre as fileiras,
dançam, brincam e provocam.
A platéia reage entre o choque
estático e o riso nervoso. Não se
sabe por que estão paralisados, se
por terem que manter a atenção
no placar com as legendas em russo das falas ou se por choque. Há
um sentido de alarme. Os atores
podem surgir de qualquer entrada, de trás, de cima e até do palco.
Alguns até topam dançar com
os atores. Ninguém, porém, se
dispõe a participar do concurso
de peitinhos promovido por Boca, apesar do intenso estímulo dos
atores. Uma porteira do teatro
quase cede, mas recua e mostra o
crachá. Zé Celso, como um Maiakóvski redivivo, parece invocar a
sufocada arte revolucionária russa dos anos 20 e intervém a partir
de uma das frisas superiores.
Não poderia haver melhor local
para essa manifestação criativa de
aparente caos. O teatro russo,
com suas escolas tradicionais,
ocupa o centro do cânone mundial fortalecido pelo conservadorismo na política, economia e cultura. Contra isso, num festival oficial, o Oficina instaura um novo
espetáculo, em que o gosto dos
novos ricos incorporados ao mercado é afrontado, bem no estilo de
Nelson Rodrigues, por uma arte
que abençoa o improviso, o cancro social, o sangue das mucosas e
a proximidade dos dejetos.
Uma estética que, ao estilo de
Artaud e Genet, propõe a transformação da arte em órgão, sua
submissão a um marginal e conversão em boca. O herói toma a
direção, sem concessão aos saberes consagrados e à estética do
dentista (Zé Celso) que diz a Boca
que seus dentes estão perfeitos.
Nelson desmoralizava a crítica
ontem e atinge também os especialistas em teatro de hoje.
Boca não aceita nada que não
seja corrompido e invertido. Oferece seu corpo em sacrifício em
defesa de uma arte que diversamente da de Dostoiévski, a quem
Nelson freqüentemente é associado, não julga. Essa arte é jornalística, como o trabalho de Nelson
Rodrigues. O real, o que acontece,
é mitificado. O imanente transcende. Nelson dizia que Zé Celso
dava muita importância ao público. Ontem, parte da platéia (a preços variando entre R$ 30 e R$
150), chocada e cansada, saiu antes do final em que o elenco desfilava com camisas tricolores, ao
som do hino da outra paixão rodrigueana. Outra parte, de pé,
aplaudia entusiasmada. Com
"Boca de Ouro", Nelson Rodrigues e Zé Celso tiram o grotesco
da margem e o colocam no centro
da arte do teatro.
O jornalista Mario Vitor Santos viaja a
Moscou a convite da organização do 6º
Festival Internacional de Teatro Tchecov
e da Funarte
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