São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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Todos os filmes do presidente

João Moreira Salles quer filmar o fim do mandato de Lula; ele comenta lançamento em DVD de "Primárias", sobre campanha de Kennedy, que inspirou "Entreatos"

Flávio Florido - 17.nov.2004/Folha Imagem
João Moreira Salles, diretor de filme sobre a campanha de Lula


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

O documentarista João Moreira Salles, que registrou em "Entreatos" (2004) os 30 últimos dias da campanha que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva para presidente da República, gostaria de ter Lula novamente diante de sua câmera.
"Minha idéia seria passar os dez últimos dias de poder com ele", diz o cineasta, em entrevista sobre "Primárias" (1960), documentário do norte-americano Robert Drew cuja edição em DVD sai agora no Brasil pelo selo Videofilmes (de Salles).
Drew usou pela primeira vez na história do cinema um equipamento portátil capaz de gravar imagem e som simultaneamente. Com ele, seguiu os passos dos candidatos John F. Kennedy e Hubert Humphrey atrás dos eleitores do Wisconsin, nos Estados Unidos. Distantes no tempo, "Primárias" e "Entreatos" (cuja edição em DVD sai no próximo 14/11) são parentes próximos no cinema documentário. Descubra por que na entrevista a seguir.
 

FOLHA - Robert Drew conta, na faixa comentada de "Primárias", como propôs a Kennedy, antes de sua posse, filmar "um presidente num momento de crise, colocado contra a parede, tendo de tomar decisões difíceis". É a raiz do documentário "Crise", que a Videofilmes irá lançar. O sr. propôs o mesmo a Lula?
JOÃO MOREIRA SALLES -
Não. Terminei de filmar no dia seguinte à vitória e só voltei a falar com Lula no dia da exibição de "Entreatos" no Festival de Brasília, dois anos mais tarde. Gostaria de filmá-lo mais uma vez, mas não agora. Minha idéia seria passar os dez últimos dias de poder com ele. Assim, teríamos os 30 dias que antecederam o poder e os dez últimos. Poderia ser interessante.

FOLHA - Está em negociações com Lula para filmar o fim de seu mandato? Que chances vê de isso ocorrer?
SALLES -
Por enquanto é apenas uma idéia. Não conversei com ninguém a respeito dela.

FOLHA - É fato que, originalmente, "Entreatos" pretendia filmar as duas campanhas simultaneamente, tal qual "Primárias" faz? Por que esse plano foi abandonado?
SALLES -
A idéia original era muito difícil de ser realizada. Logisticamente, não teríamos como acompanhar dois candidatos que se locomovem pelo Brasil em aviões particulares, passando às vezes por quatro Estados no mesmo dia. Seria caro demais. Além disso, é difícil pensar que conseguiríamos acesso ao coração de uma campanha, se esta sabe que temos uma segunda equipe no coração da campanha adversária.

FOLHA - Concorda que "Primárias" tornou-se um filme de personagem, protagonizado por J. F. Kennedy, a despeito da atenção isonômica do diretor aos dois candidatos?
SALLES -
O cinema direto retoma a idéia original de [Robert J.] Flaherty [1884-1951], ou seja, a de um cinema não-ficcional baseado em personagens. Nesses casos, vencerá sempre aquele personagem que tiver presença de câmera. Kennedy tem carisma, Humphrey não. Drew exigiu que o tempo de tela dos dois fosse o mesmo. Mas aritmética é uma coisa, presença é outra. Mesmo se Humphrey ocupasse mais da metade do filme, ainda assim Kennedy seria o personagem marcante. Isso independe até das simpatias ideológicas dos diretores. O personagem carismático se impõe, sempre.

FOLHA - Drew diz que a experiência de seguir os candidatos mudou suas opiniões anteriores sobre eles. É uma demonstração da impossibilidade de observar sem interferir e sofrer interferência do que se observa?
SALLES -
Sim. Sobre essa questão da imparcialidade da câmera no cinema direto há muita confusão. Na origem do movimento, alguns pioneiros chegaram a defender essa tese. Drew defendeu-a; de certa forma. Hoje, acredito que a verdade está no meio do caminho. Quando se filma alguém durante tanto tempo, o tempo todo, a consciência da câmera oscila. Ora é percebida e interfere na ação, ora não. O essencial é que os momentos de inconsciência não são intrinsecamente melhores do que aqueles em que o personagem sabe que está sendo filmado. Jean Rouch [1917-2004] demonstrou que a encenação é sincera. Acredito nisso e, portanto, não me importo em saber quando algo está sendo dito explicitamente para a câmera.

FOLHA - É possível falar em espontaneidade numa situação por definição encenada, como uma campanha política?
SALLES -
A espontaneidade para mim é um conceito sem muito uso. O que seria ser espontâneo? Em situação social, não estamos sempre encenando? É difícil definir a espontaneidade. É verdade que todo candidato, por definição, é um personagem, independentemente de estar ou não sendo filmado.

FOLHA - No texto introdutório a "Primárias", o sr. diz que Drew não fez um filme perfeito. Quais são seus defeitos e seu maior mérito?
SALLES -
O mérito é a ousadia. Jogar fora tudo o que se fazia no documentário há pelo menos 30 anos. Abandonar trilha, entrevistas, tripés, quase toda narração. Inventar um equipamento revolucionário, o grupo sincrônico leve, capaz de acompanhar a ação e não mais ditá-la. Ter a paciência de esperar oito anos até tudo ficar pronto. As imperfeições são conseqüência desse pioneirismo. Como é o primeiro filme do gênero, nem tudo está nos eixos. Não conseguem se livrar inteiramente da narração. A câmera se aproxima dos personagens, mas não a ponto de sabermos quem são, o que pensam. O cinema direto será um cinema não mais da descrição, mas da experiência: o espectador sentindo-se na ação; "Primárias" chega perto, mas não atinge inteiramente o objetivo.

FOLHA - Acredita que "Jogo de Cena", próximo filme de Eduardo Coutinho, irá inaugurar um dispositivo no gênero documental, ao promover a ida do documentado até o documentarista, enquanto este permanece fixo num palco?
SALLES -
Coutinho não gosta que se fale dos seus filmes antes que fiquem prontos. Vou respeitar. Digo apenas que a novidade de "Jogo de Cena" não me parece ser propriamente esta, mas o fato de o filme se propor a embaralhar os conceitos de espontaneidade e encenação.


Leia íntegra da entrevista com João Moreira Salles


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