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Como escapar do efeito são Mateus?
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Quais são as relações lógicas
possíveis entre o bem e o mal?
Há males que vêm para o bem.
Os reveses que sofremos mobilizam forças adormecidas em
nós. A recessão reduz a poluição. O aumento do número de
divórcios aquece o mercado
imobiliário. Nossos campos de
várzea e ruas esburacadas induziram o domínio de bola
que distingue o jogador brasileiro (como explica Pelé no documentário "Futebol", a maravilhosa trilogia em vídeo dirigida por Arthur Fontes e João
Moreira Salles).
Mas se é verdade que o mal
pode alimentar o bem, não é
menos verdade que o bem pode, às vezes, gerar o mal.
"O caminho do inferno",
alertava o cruzado militante
são Bernardo no século 12, "está repleto de boas intenções". O
uso de adubos químicos destinados a melhorar as colheitas
provocou graves danos ecológicos. O menino mimado de
hoje é o adulto estragado de
amanhã. A esmola impulsiva
na mão de uma criança pedinte pode estar alimentando a
exploração de menores.
A terceira e última possibilidade lógica nas relações entre
o bem e o mal é a de que a tendência de cada um deles seja
produzir não o seu oposto, como nos exemplos acima, mas
frutificar em mais de si mesmo.
Sai a equação paradoxal da
conversão do mal em bem (e
vice-versa) e entra a espiral de
realimentação por meio da
qual tanto o bem tende a reforçar o bem, quanto o mal a perpetuar e a potencializar o mal.
O "efeito são Mateus" -inspirado talvez na experiência
prévia do apóstolo como coletor de impostos no Império Romano- ilustra com perfeição
essa possibilidade: "Ao que
tem muito, mais lhe será dado
e ele terá em abundância; mas
ao que não tem, até mesmo o
pouco que lhe resta será retirado" (Mateus, 25:29). Desgraça
pouca é bobagem.
A boa saúde, por exemplo,
também protege o organismo
contra outras possíveis doenças; a debilidade física, ao contrário, torna-o ainda mais vulnerável a toda sorte de males.
Os que têm mais facilidade para aprender coisas novas não
são os que sabem pouco e mais
precisam, mas justamente
aqueles que já aprenderam e
sabem bastante.
Uma pessoa apaixonada sente-se feliz e exuberante, o que
faz com que ela se torne mais
atraente e capaz de conquistar
o afeto dos que a cercam. O deprimido, ao contrário, arrasta-se melancólico e desarvorado pelo dia, o que tende a afastar mais ainda as pessoas e
amigos de quem ele precisaria
para conseguir se reerguer. Se o
amor atrai, a depressão afugenta.
O efeito são Mateus está na
raiz de alguns dos mais intratáveis problemas sociais. No
mercado de trabalho, por
exemplo, quem está empregado tem mais facilidade de arranjar um novo emprego do
que quem não está. Isso ocorre
porque o simples fato de estar
empregado é visto pelo empregador como índice de mérito e
competência. Quanto mais
tempo se fica desocupado, menor a chance de obter emprego.
Estar sem emprego é a desgraça do desempregado.
Outro exemplo é o que ocorre
no mercado financeiro. Dinheiro, diz o provérbio, faz dinheiro. Daí que, como aponta
Adam Smith, "quando se tem
um pouco é com frequência fácil ganhar mais; a grande dificuldade é conseguir este pouco". Ou como dizia John Stuart
Mill: "Os que acham fácil ganhar dinheiro não são os pobres, mas os ricos". Os juros
praticados no Brasil pós-real
ilustram de forma obscena essa
realidade.
Mas a expressão mais injusta
e cruel do efeito são Mateus na
vida brasileira é o destino que
ele reserva ao enorme contingente de crianças e adolescentes perambulando pelas ruas
das nossas grandes cidades em
busca de esmolas, milagres e
oportunidades.
O quadro retratado por Gilberto Dimenstein e Fernando
Rossetti na Folha de 21 de junho deste ano (pags. 3-1 a 3-3)
evidencia o drama da equação
perversa -baixa escolaridade
+ desemprego = criminalidade- que turva e arruína a vida desses jovens.
O fato espantoso é que um
terço da população carcerária
brasileira é constituída por jovens entre 18 e 25 anos de idade, dos quais 82% têm menos
de oito anos de estudo. Dois
terços dos nossos presos com
menos de 21 anos não passaram da 4ª série do 1º grau e a
quase totalidade desses jovens
encarcerados estava desempregada (53%) ou no mercado informal (44%). Na Grande São
Paulo, a metade dos cerca de
1,6 milhão de desempregados
tem menos de 24 anos e ínfima
escolarização.
Alguém pode ser responsabilizado por ter nascido em Bruxelas ou em Calcutá? Alguém
fez por merecer a família miserável em que veio ao mundo?
Nossos menores de rua e delinquentes mirins são vítimas de
um acidente cego e bestial
-uma espiral de infortúnio
que poderia ter arruinado a vida de qualquer um de nós ou
de nossos filhos e da qual eles e
seus descendentes jamais conseguirão sair sem auxílio vindo de fora.
O acidente que os vitimou é o
de terem nascido em famílias
cuja condição econômica e falta de preparo impedem que
elas invistam adequadamente
na saúde, educação e capacitação profissional de seus membros mais jovens. A falta de
preparo do jovem leva ao desemprego; a falta de emprego e
perspectivas leva ao desespero;
e a falta de esperança leva à
droga e ao crime.
A miséria e o despreparo de
uns é o berço do desamparo,
inépcia e ruína de outros -fecha-se o ciclo da miséria e da
delinquência.
Como escapar do efeito são
Mateus? Como romper o círculo de ferro dessa dinâmica diabólica que há séculos domina o
quadro social brasileiro e faz
com que o mal alimente, perpetue e potencialize o mal?
Milagres, panacéias dialéticas e soluções a jato não existem. Nada resolve tudo. Se
mercados livres fossem sinônimo de exclusão social, a miséria na Bélgica seria maior do
que na India. Mas seria ilusão
imaginar que o mercado desprovido de uma dotação adequada de capital humano possa dar conta sozinho do recado. Para quebrar o efeito são
Mateus, a cooperação entre o
Estado e o setor privado é indispensável.
O baixo grau de escolarização e a péssima qualidade do
nosso ensino básico são a matriz da espiral de infortúnio
que devora tantos adolescentes. Uma política social objetivando a cidadania plena para
o maior número de brasileiros
precisa ter a coragem de concentrar os recursos disponíveis
na formação básica e na capacitação para a vida profissional das crianças e jovens em
famílias de baixa renda.
O Brasil continuará sendo
um país pobre e injusto, dividido entre párias e marajás, enquanto a condição da família
em que uma criança tiver a
sorte ou o azar de nascer exercer um papel mais decisivo na
definição do seu futuro do que
qualquer outra coisa ou escolha que ela possa fazer. Nenhum lance de gênio de Ronaldinho ou Rivaldo abolirá o
nosso criminoso descaso.
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