São Paulo, quinta, 9 de julho de 1998

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Como escapar do efeito são Mateus?

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Quais são as relações lógicas possíveis entre o bem e o mal? Há males que vêm para o bem. Os reveses que sofremos mobilizam forças adormecidas em nós. A recessão reduz a poluição. O aumento do número de divórcios aquece o mercado imobiliário. Nossos campos de várzea e ruas esburacadas induziram o domínio de bola que distingue o jogador brasileiro (como explica Pelé no documentário "Futebol", a maravilhosa trilogia em vídeo dirigida por Arthur Fontes e João Moreira Salles).
Mas se é verdade que o mal pode alimentar o bem, não é menos verdade que o bem pode, às vezes, gerar o mal.
"O caminho do inferno", alertava o cruzado militante são Bernardo no século 12, "está repleto de boas intenções". O uso de adubos químicos destinados a melhorar as colheitas provocou graves danos ecológicos. O menino mimado de hoje é o adulto estragado de amanhã. A esmola impulsiva na mão de uma criança pedinte pode estar alimentando a exploração de menores.
A terceira e última possibilidade lógica nas relações entre o bem e o mal é a de que a tendência de cada um deles seja produzir não o seu oposto, como nos exemplos acima, mas frutificar em mais de si mesmo. Sai a equação paradoxal da conversão do mal em bem (e vice-versa) e entra a espiral de realimentação por meio da qual tanto o bem tende a reforçar o bem, quanto o mal a perpetuar e a potencializar o mal.
O "efeito são Mateus" -inspirado talvez na experiência prévia do apóstolo como coletor de impostos no Império Romano- ilustra com perfeição essa possibilidade: "Ao que tem muito, mais lhe será dado e ele terá em abundância; mas ao que não tem, até mesmo o pouco que lhe resta será retirado" (Mateus, 25:29). Desgraça pouca é bobagem.
A boa saúde, por exemplo, também protege o organismo contra outras possíveis doenças; a debilidade física, ao contrário, torna-o ainda mais vulnerável a toda sorte de males. Os que têm mais facilidade para aprender coisas novas não são os que sabem pouco e mais precisam, mas justamente aqueles que já aprenderam e sabem bastante.
Uma pessoa apaixonada sente-se feliz e exuberante, o que faz com que ela se torne mais atraente e capaz de conquistar o afeto dos que a cercam. O deprimido, ao contrário, arrasta-se melancólico e desarvorado pelo dia, o que tende a afastar mais ainda as pessoas e amigos de quem ele precisaria para conseguir se reerguer. Se o amor atrai, a depressão afugenta.
O efeito são Mateus está na raiz de alguns dos mais intratáveis problemas sociais. No mercado de trabalho, por exemplo, quem está empregado tem mais facilidade de arranjar um novo emprego do que quem não está. Isso ocorre porque o simples fato de estar empregado é visto pelo empregador como índice de mérito e competência. Quanto mais tempo se fica desocupado, menor a chance de obter emprego. Estar sem emprego é a desgraça do desempregado.
Outro exemplo é o que ocorre no mercado financeiro. Dinheiro, diz o provérbio, faz dinheiro. Daí que, como aponta Adam Smith, "quando se tem um pouco é com frequência fácil ganhar mais; a grande dificuldade é conseguir este pouco". Ou como dizia John Stuart Mill: "Os que acham fácil ganhar dinheiro não são os pobres, mas os ricos". Os juros praticados no Brasil pós-real ilustram de forma obscena essa realidade.
Mas a expressão mais injusta e cruel do efeito são Mateus na vida brasileira é o destino que ele reserva ao enorme contingente de crianças e adolescentes perambulando pelas ruas das nossas grandes cidades em busca de esmolas, milagres e oportunidades.
O quadro retratado por Gilberto Dimenstein e Fernando Rossetti na Folha de 21 de junho deste ano (pags. 3-1 a 3-3) evidencia o drama da equação perversa -baixa escolaridade + desemprego = criminalidade- que turva e arruína a vida desses jovens.
O fato espantoso é que um terço da população carcerária brasileira é constituída por jovens entre 18 e 25 anos de idade, dos quais 82% têm menos de oito anos de estudo. Dois terços dos nossos presos com menos de 21 anos não passaram da 4ª série do 1º grau e a quase totalidade desses jovens encarcerados estava desempregada (53%) ou no mercado informal (44%). Na Grande São Paulo, a metade dos cerca de 1,6 milhão de desempregados tem menos de 24 anos e ínfima escolarização.
Alguém pode ser responsabilizado por ter nascido em Bruxelas ou em Calcutá? Alguém fez por merecer a família miserável em que veio ao mundo? Nossos menores de rua e delinquentes mirins são vítimas de um acidente cego e bestial -uma espiral de infortúnio que poderia ter arruinado a vida de qualquer um de nós ou de nossos filhos e da qual eles e seus descendentes jamais conseguirão sair sem auxílio vindo de fora.
O acidente que os vitimou é o de terem nascido em famílias cuja condição econômica e falta de preparo impedem que elas invistam adequadamente na saúde, educação e capacitação profissional de seus membros mais jovens. A falta de preparo do jovem leva ao desemprego; a falta de emprego e perspectivas leva ao desespero; e a falta de esperança leva à droga e ao crime.
A miséria e o despreparo de uns é o berço do desamparo, inépcia e ruína de outros -fecha-se o ciclo da miséria e da delinquência.
Como escapar do efeito são Mateus? Como romper o círculo de ferro dessa dinâmica diabólica que há séculos domina o quadro social brasileiro e faz com que o mal alimente, perpetue e potencialize o mal?
Milagres, panacéias dialéticas e soluções a jato não existem. Nada resolve tudo. Se mercados livres fossem sinônimo de exclusão social, a miséria na Bélgica seria maior do que na India. Mas seria ilusão imaginar que o mercado desprovido de uma dotação adequada de capital humano possa dar conta sozinho do recado. Para quebrar o efeito são Mateus, a cooperação entre o Estado e o setor privado é indispensável.
O baixo grau de escolarização e a péssima qualidade do nosso ensino básico são a matriz da espiral de infortúnio que devora tantos adolescentes. Uma política social objetivando a cidadania plena para o maior número de brasileiros precisa ter a coragem de concentrar os recursos disponíveis na formação básica e na capacitação para a vida profissional das crianças e jovens em famílias de baixa renda.
O Brasil continuará sendo um país pobre e injusto, dividido entre párias e marajás, enquanto a condição da família em que uma criança tiver a sorte ou o azar de nascer exercer um papel mais decisivo na definição do seu futuro do que qualquer outra coisa ou escolha que ela possa fazer. Nenhum lance de gênio de Ronaldinho ou Rivaldo abolirá o nosso criminoso descaso.



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