São Paulo, terça-feira, 09 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Intérprete era a celebração da vida

RONALDO EVANGELISTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O sorriso tímido, a indefectível boina, o olhar brilhante, a voz de veludo melhorada com a idade. Ibrahim Ferrer simbolizava o charme cubano, com sua calma septuagenária e a alegria de quem sabe de sua importância e encontra o reconhecimento merecido -ainda que tardio.
Sua voz era humana e melancólica, e sua música era a própria celebração da vida. Quando cantava, exalava a mesma elegância vivida de sua presença. Seu vibrato carregava toda a história de sua vida. Era humilde, carismático, caloroso, divertido.
Foi o primeiro de sua turma a ganhar um álbum solo pós-Buena Vista, e por esse disco ganhou o Grammy Latino de artista revelação, aos 73 anos. No filme que tornou Ferrer famoso, o músico Ry Cooder fala dele com o encantamento natural de quem o via pela primeira vez: "Ele saiu das ruas como um Nat King Cole cubano. Você encontra com uma pessoa assim só uma vez na vida".
Intérprete ideal de boleros e de "son" -estilo sempre associado ao Buena Vista Social Club-, era cantor desde os 14 anos, mas contava que, quando queria gravar um álbum só de boleros, diziam que sua voz era muito fina. Esse era seu último desejo, realizado pela metade. Morreu gravando seu disco, não o viu lançado.
Ex-engraxate, antes do reconhecimento, ganhava US$ 15 (R$ 34) por mês lustrando sapatos pelas ruas de Havana. Dali, passou para cima do palco com a mesma presença de espírito e com o mesmo brilho que sempre carregou. O fenômeno de sua descoberta, ao lado de seus colegas de Buena Vista, faz pensar nos talentos incalculáveis que se escondem por trás das improbabilidades das pequenas histórias de cada um.
Agora, após a sua (re)descoberta, quem não há de pensar com curiosidade e olhar de maneira diferente para todos os senhores humildes com seus trabalhos prosaicos que encontramos pelo mundo, imaginando quais seriam seus talentos escondidos, esperando para ser descobertos?
Ferrer, com o brilho de sua presença, esperou muito, mas aproveitou e viveu intensamente seus últimos anos, já com o respeito devido. Dizia sempre que isso não o mudaria. Ajudava o seu dia-a-dia, claro, mas ele continuava sendo "o mesmo amigo, o mesmo vizinho, o mesmo pai".
Ferrer era único. A habitual entrega com que interpretava as canções tão perfeitas que escolhia inspirava paixões intensas. Suas gravações são trilhas sonoras de amores, esperanças, alegrias. Sempre animado e simpático, era um daqueles senhores que inspiravam respeito e admiração -e não só por sua música.
Em entrevista à Folha no ano passado, comentava sobre a morte de dois de seus colegas de Buena Vista, Compay Segundo e Rubén González: "Morreram bem agora que tinham de viver. Mas pelo menos eles ficaram na história". Ninguém teria dito melhor sobre ele próprio.


Texto Anterior: Música: Cubanos choram a morte do cantor Ibrahim Ferrer, 78
Próximo Texto: TV paga: Allen aprendeu a lição de "Manhattan"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.