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ANÁLISE
Intérprete era a celebração da vida
RONALDO EVANGELISTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O sorriso tímido, a indefectível boina, o olhar brilhante,
a voz de veludo melhorada com a
idade. Ibrahim Ferrer simbolizava o charme cubano, com sua calma septuagenária e a alegria de
quem sabe de sua importância e
encontra o reconhecimento merecido -ainda que tardio.
Sua voz era humana e melancólica, e sua música era a própria celebração da vida. Quando cantava, exalava a mesma elegância vivida de sua presença. Seu vibrato
carregava toda a história de sua
vida. Era humilde, carismático,
caloroso, divertido.
Foi o primeiro de sua turma a
ganhar um álbum solo pós-Buena
Vista, e por esse disco ganhou o
Grammy Latino de artista revelação, aos 73 anos. No filme que tornou Ferrer famoso, o músico Ry
Cooder fala dele com o encantamento natural de quem o via pela
primeira vez: "Ele saiu das ruas
como um Nat King Cole cubano.
Você encontra com uma pessoa
assim só uma vez na vida".
Intérprete ideal de boleros e de
"son" -estilo sempre associado
ao Buena Vista Social Club-, era
cantor desde os 14 anos, mas contava que, quando queria gravar
um álbum só de boleros, diziam
que sua voz era muito fina. Esse
era seu último desejo, realizado
pela metade. Morreu gravando
seu disco, não o viu lançado.
Ex-engraxate, antes do reconhecimento, ganhava US$ 15 (R$
34) por mês lustrando sapatos pelas ruas de Havana. Dali, passou
para cima do palco com a mesma
presença de espírito e com o mesmo brilho que sempre carregou.
O fenômeno de sua descoberta,
ao lado de seus colegas de Buena
Vista, faz pensar nos talentos incalculáveis que se escondem por
trás das improbabilidades das pequenas histórias de cada um.
Agora, após a sua (re)descoberta, quem não há de pensar com
curiosidade e olhar de maneira
diferente para todos os senhores
humildes com seus trabalhos prosaicos que encontramos pelo
mundo, imaginando quais seriam
seus talentos escondidos, esperando para ser descobertos?
Ferrer, com o brilho de sua presença, esperou muito, mas aproveitou e viveu intensamente seus
últimos anos, já com o respeito
devido. Dizia sempre que isso não
o mudaria. Ajudava o seu dia-a-dia, claro, mas ele continuava sendo "o mesmo amigo, o mesmo vizinho, o mesmo pai".
Ferrer era único. A habitual entrega com que interpretava as
canções tão perfeitas que escolhia
inspirava paixões intensas. Suas
gravações são trilhas sonoras de
amores, esperanças, alegrias.
Sempre animado e simpático, era
um daqueles senhores que inspiravam respeito e admiração -e
não só por sua música.
Em entrevista à Folha no ano
passado, comentava sobre a morte de dois de seus colegas de Buena Vista, Compay Segundo e Rubén González: "Morreram bem
agora que tinham de viver. Mas
pelo menos eles ficaram na história". Ninguém teria dito melhor
sobre ele próprio.
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