São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2008

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ANTONIO CICERO

Notas sobre Vinicius de Moraes


Era fascinante que alguém já consagrado como poeta passasse a escrever grandes letras

QUANDO COMECEI a apreciar a poesia de Vinicius de Moraes, ele já era famoso como letrista. Lembro-me de que alguns amigos dos meus pais comentavam que ele estava desperdiçando na música popular o seu extraordinário talento poético. Orgulho-me de lembrar que meus pais não concordavam com isso. Eu menos ainda.
O fato é que Vinicius foi uma grande novidade na música popular brasileira. Naturalmente, já tínhamos tido grandes letristas antes dele.
Basta lembrar, entre tantos, Noel Rosa. Mas era fascinante que alguém já consagrado como poeta, responsável por alguns dos poemas líricos mais perfeitos da época, passasse a escrever também grandes letras de canções. E mais fascinante ainda era o fato de que essas letras, longe de serem, como se poderia esperar, mais literárias, mais impostadas, mais artificiais do que as dos letristas tradicionais, eram, ao contrário, menos literárias, impostadas, artificiais do que as da maior parte destes. Não fosse assim, e elas não poderiam ter feito parte da revolução que foi a invenção da bossa nova.
Antonio Candido diz que a poesia de Vinicius "combina de maneira admirável o requinte da fatura com a expressão íntegra das emoções. A espontaneidade foi a sua mais bela construção". Pois bem, isso se aplica não só aos poemas, mas às letras de Vinicius. E o mesmo poderia ser dito tanto da música de Tom Jobim quanto do canto e do violão de João Gilberto, assim como do todo, que é a canção cantada. Depurada de todo constrangimento que lhe fosse imposto por regras arbitrárias, uma canção de Tom e Vinicius gravada por João Gilberto é por nós apreendida como algo inteiramente espontâneo, límpido, natural.
Hoje a bossa nova é quase universalmente reconhecida como uma das manifestações mais altas da cultura brasileira. Um disco como "Chega de Saudade" é pelo menos tão importante quanto qualquer outra obra de arte da mesma época.
Como é possível que se tenha pensado que, ao fazer letras de canções, Vinicius desperdiçasse seu talento? Talvez porque os gêneros artísticos eruditos fossem associados a linhagens nobres, e os gêneros artísticos populares, à ausência de linhagem. Assim como se supunha que um nobre valesse mais que um plebeu, independentemente do que fizesse, assim também se supunha que, independentemente do que ela "fizesse", uma obra que pertencesse a um gênero erudito valia mais do que uma obra que pertencesse a um gênero popular.
Ou seja, ignorava-se -e ainda hoje muitos ignoram- a "Revolução Francesa" realizada pelas vanguardas, que já havia mostrado que uma obra de arte não é em primeiro lugar um membro de uma estirpe, mas um indivíduo, que vale pelos seus próprios méritos estéticos.
É devido a essa ignorância que, embora Vinicius até hoje seja muito popular tanto como letrista quanto como poeta, os literatos, intelectuais e acadêmicos medianos, que precisam classificar para "entender", passaram a ter dificuldades com ele, desde que se tornou letrista.
E a esse mesmo público Vinicius oferece um outro tipo de dificuldade, oposto, porém complementar, ao primeiro. É que a própria poesia escrita dele não se enquadra facilmente na grande linha do modernismo brasileiro. Ora Vinicius usa versos livres, ora versos métricos, e freqüentemente opta por formas fixas, entre as quais o soneto, construindo poemas espontâneos, límpidos, naturais e, no entanto, surpreendentes. Pois bem, o soneto, tendo sido a forma fixa mais praticada nas tradições ocidentais modernas, foi freqüentemente tomado como o símbolo do conservadorismo ou reacionarismo formal.
Isso porém representa mais um exemplo daquela postura que, recusando-se a considerar uma obra de arte como um indivíduo, prefere apreendê-la como membro de uma estirpe (neste caso, a dos sonetos), isto é, prefere prejulgá-la. Não pode haver atitude mais preconceituosa e reacionária em relação à arte.
Num poema, tudo é conteúdo: e tudo é forma. O que chamamos de "forma fixa" é uma forma que se repete. Mas cada palavra também é uma forma fixa, sendo uma forma que se repete. Entre formas que se repetem e formas que não se repetem é que se criam todos os poemas, inclusive os que se consideram experimentais.
E, como não há fórmula nem receita para criá-los, todo poema bom é, no fundo, experimental. Assim são os grandes poemas -inclusive os grandes sonetos- de Vinicius de Moraes, que merecem ser lidos (ou relidos como se lidos pela primeira vez) por mentes abertas.


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