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LITERATURA
Como um artesão, Osman Lins cria labirintos verbais
RODRIGO PETRONIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
É um lugar-comum entre historiadores ressaltar a importância da perspectiva, criada no
século 15 e espinha dorsal do Renascimento. Mas poucos perceberam o quanto ela foi empobrecedora, pois homogeneizou as representações em uma única visão.
Em outras palavras: trocou o olho
"espiritual" pelo olho "carnal" e
deu origem àquela arte que Duchamp batizou pejorativamente
de "retiniana". As infinitas figurações existentes até então foram reduzidas ao despotismo de uma
técnica: o ponto cêntrico.
Nesse sentido, é notável a lucidez de Osman Lins (1924-78) em
uma entrevista concedida à revista "Escrita", em 1976. Nela, relata
o impacto que sofreu quando tomou contato com a arte românica
e com os vitrais medievais na
França. Nessa arte, diz, não há
centro: o mundo é visto como um
caleidoscópio. E arremata: só veremos algo semelhante bom tempo depois, com o advento da arte
moderna no século 20. A antologia "Osman Lins - Melhores Contos" é uma ótima iniciação à obra
desse artesão de labirintos verbais
e uma entrada para o seu universo
literário multifacetado.
Os contos foram extraídos de
dois livros: "Os Gestos" (57) e
"Nove, Novena" (66). Tendo em
vista que o autor levou quase dez
anos trabalhando no primeiro e
sabendo-se que há um intervalo
semelhante entre aquele e este, tal
reunião deixa de ser mero mostruário de seus melhores momentos e transforma-se em uma síntese de boa parte de sua carreira literária e transformações estilísticas.
"Os Gestos" segue uma linha de
tom realista, com cenas vazadas
por fortes doses de lirismo que em
alguns momentos tende ao expressionismo. Doentes, crianças,
um discurso feito em face de um
morto, o triste reencontro de dois
amigos de infância: são cenas fechadas, que se passam na intimidade dos personagens e registram
a impossibilidade do amor e
questões ditadas pela morte.
Nessa obra vemos alguns recursos de que Lins vai se valer depois,
como experiências com discurso
indireto livre e com as combinações possíveis de um enredo. Mas
eles só vão se tornar a marca indelével do estilo maduro do autor
em "Nove, Novena". São desse livro os contos mais engenhosos,
nos quais a figuração da miséria
vem sempre perpassada pela lucidez da forma.
Assim, temos estórias magistrais, como "Conto Barroco ou
Unidade Tripartita", onde o embaralhar de várias linhas narrativas funciona como as linhas melódicas de uma invenção a várias
vozes, e é a base para a criação de
uma realidade (brasileira) plasmada pela alucinação, a morte e a
decadência. Essa aventura narrativa segue em crescendo e culmina em uma obra-prima: "Retábulo de Santa Joana Carolina".
Nesse conto, Lins cria uma fábula medieval alocada em plena
realidade nordestina. Desde a
subdivisão em mistérios (dos autos religiosos) até a criação de recursos tipográficos para marcar
uma cena ou personagem. O resultado é uma visão da literatura
como um microcosmo do universo e uma mágica de correspondências onde a forma literária é
quase uma equivalente estrutural
da vida: um espaço virtual onde as
coisas se interpenetram e se comunicam.
A antologia foi prefaciada e selecionada por Sandra Nitrini, que
também assina o posfácio da peça
que inspirou o filme "Lisbela e o
Prisioneiro". Resta a esperança
de que os lançamentos iluminem
esse que foi um dos grandes escritores brasileiros do século 20.
Quem sabe com seu trabalho de
dramaturgo, contista e romancista, também não volte à circulação
uma de suas facetas mais instigantes e polêmicas: a de ensaísta.
Dada a persistência dos problemas inculturais brasileiros, como
sempre atualíssimos, seria no mínimo um ótimo reconforto.
Osman Lins - Melhores Contos
Autor: Osman Lins
Editora: Global
Quanto: R$ 32 (224 págs.)
Lisbela e o Prisioneiro
Autor: Osman Lins
Editora: Planeta
Quanto: R$ 32 (120 págs.)
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