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FERNANDO BONASSI
Cachorros loucos
Acordando de mau humor com as buzinadas do
despertador, o sol dando porrada
na cara enrugada, sacana agarrado ao cobertor, a língua seca
enrolada, derruba-se da cama o
trabalhador, começa mais uma
semana desgraçada...
Vestindo um macacão engomado de fumaça, imitação de couro
como das putas baratas, destruindo um naco de pão a facadas,
amassado com manteiga pelo
diabo dos salários, escravo de otários apressados, guias desconfiadas penduradas no pescoço, um
café amanhecido empurrado na
garganta, um beijo adocicado na
esposa que levanta, um afago de
migalhas nas crianças desmaiadas no berço, um sinal da cruz
pra São Cristovão enrolado num
terço e pronto: uma chave no contato é espetada, um motor é pedalado, um capacete é ajustado, um
aceno de despedida é enviado,
despenca o motoboy pelo trânsito
encruado...
São jovens, são machos, são valentes; são mesquinhos, são moleques, são dementes; lançando-se
nas pistas feito serpentes, a paisagem urbana motorizada de sementes, o caos dos elementos
mais urgentes; embutidos na viagem das viaturas, conferem o
atendimento de fraturas; gritando com os carros espalhados, arrancando retrovisores espetados,
arranhando braços apoiados no
caminho. As pernas escancaradas
ao carinho de joelhadas! A gasolina fermentada nas coxas dos tanques espremidos, ralados entre
ônibus lotados e caminhões distraídos, entre escapamentos encharcados e ataques de espirro,
lambuzados de diesel e adesivos
despregados, mochilas penduradas e documentos decisivos, os sacos cheios recozidos ao carburador das horas, moedas chacoalhadas nos desníveis das estradas,
equilibrando-se às gingadas,
voando por lombadas, as canelas
ensopadas de valetas pelos quatro
pontos cardeais, muito além dos
jardins, bem pra lá das marginais, entre becos e vielas, entre escadões, muquifos e favelas, deitando preguiçosos nas curvas inclinadas, por desvãos, desvios e
guinadas, um velho baú de segredos grudado no rabo pelo emprego miserável, tirando o sossego
das pombas do meio-fio, fundido
à máquina incandescente, um aspecto doente, as vistas cansadas, o
cabelo duro de poeira levantada e
sem dar a volta por cima -são
frações de centavo por quilômetro
rodado, o custo de sua vida- entregando revistas, flores, convites;
contratos, casamentos, desquites;
relatórios improváveis, polêmicas
insolúveis, pacotes insondáveis;
cocaína chutada, maconha prensada, laricas engraçadas... são
inúmeras as atrações! O sigilo dos
embrulhos é a alma dessas transações...
O estômago revirado de antiácidos, as narinas melecadas de monóxido, o pulmão enegrecido de
fuligem, da velocidade a vertigem, dando coice nas lanternas
apagadas, nos motoristas de domingo, o peito aflito e a cabeça
chata como pára-choques, próteses enfiadas nas carnes esticadas,
pinos espetados nos ossos da bacia, pontos avermelhados na carteira metida pelas nádegas, pedaleiras raspadas nas calçadas, as
botas esfoladas, filando aperitivos
em escritórios escusos, em casas
de massagem, em postos de triagem, em grandes bacanais onde a
bossa nova fica latejando nos metais...
Uma vontade de ficar parado
contra a obrigação de estar partindo. É um homem do tempo. O
tempo dos outros. Um tempo
comprado e vendido. Um tempo
roubado e perdido.
De licenciamento ultrapassado,
seguro vencido, fugindo de blitz
como o inimigo público número
um, uma pá de receios por centímetro cúbico, puxando conversa
com vigias entediados, secretárias
ressentidas, menores abandonados; criando confusão, driblando
postes de iluminação, segue servindo...
Sanduíches de um real engolidos no cruzamento, esse é o alimento; as costas comprometidas
em lamento por buracos acertados, avançando contra velhas assustadas, as viseiras levantadas,
dividindo a sua sina com outros
ferrados num minuto de semáforo, desprezando ciclistas, desafiando os carros armados de seguranças descolados (quem tem
aquilo, tem medo).
São suicidas escolados se jogando nas roletas das esquinas, encolhidos em seus corpos como aves
de rapina, prontos pro bote, sorrindo quando filmados, comendo
a grama dos acostamentos, tão
inocentes quanto culpados, esnobando sinais codificados ao arrepio da lei e à revelia das placas
sem sentido, intrometidos entre
faixas, fluindo...
Porque a cidade não pode parar; porque negócios precisam ser
feitos; porque as pizzas estão esfriando; porque os viciados estão
implorando. Porque é preciso dar
o que fazer a essa gente esfomeada, a cidade angustiada; porque
os contratos estão se multiplicando e os compromissos se estreitando, lá vão eles, dançando feito
bailarinos, como camundongos
embriagados, feito assassinos,
imitando sirenes nas avenidas
congestionadas, enquanto amigos e parentes, descrentes de sua
pouca sorte, pregam os olhos nos
televisores de tragédias, onde os
cadáveres imobilizados nas sarjetas embalam as tardes do planeta, comendo fragmentos asfaltados pra alegria dos paramédicos
empregados... Morrendo na contramão, atrapalhando o tráfego.
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