UOL


São Paulo, terça-feira, 09 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Cachorros loucos

Acordando de mau humor com as buzinadas do despertador, o sol dando porrada na cara enrugada, sacana agarrado ao cobertor, a língua seca enrolada, derruba-se da cama o trabalhador, começa mais uma semana desgraçada...
Vestindo um macacão engomado de fumaça, imitação de couro como das putas baratas, destruindo um naco de pão a facadas, amassado com manteiga pelo diabo dos salários, escravo de otários apressados, guias desconfiadas penduradas no pescoço, um café amanhecido empurrado na garganta, um beijo adocicado na esposa que levanta, um afago de migalhas nas crianças desmaiadas no berço, um sinal da cruz pra São Cristovão enrolado num terço e pronto: uma chave no contato é espetada, um motor é pedalado, um capacete é ajustado, um aceno de despedida é enviado, despenca o motoboy pelo trânsito encruado...
São jovens, são machos, são valentes; são mesquinhos, são moleques, são dementes; lançando-se nas pistas feito serpentes, a paisagem urbana motorizada de sementes, o caos dos elementos mais urgentes; embutidos na viagem das viaturas, conferem o atendimento de fraturas; gritando com os carros espalhados, arrancando retrovisores espetados, arranhando braços apoiados no caminho. As pernas escancaradas ao carinho de joelhadas! A gasolina fermentada nas coxas dos tanques espremidos, ralados entre ônibus lotados e caminhões distraídos, entre escapamentos encharcados e ataques de espirro, lambuzados de diesel e adesivos despregados, mochilas penduradas e documentos decisivos, os sacos cheios recozidos ao carburador das horas, moedas chacoalhadas nos desníveis das estradas, equilibrando-se às gingadas, voando por lombadas, as canelas ensopadas de valetas pelos quatro pontos cardeais, muito além dos jardins, bem pra lá das marginais, entre becos e vielas, entre escadões, muquifos e favelas, deitando preguiçosos nas curvas inclinadas, por desvãos, desvios e guinadas, um velho baú de segredos grudado no rabo pelo emprego miserável, tirando o sossego das pombas do meio-fio, fundido à máquina incandescente, um aspecto doente, as vistas cansadas, o cabelo duro de poeira levantada e sem dar a volta por cima -são frações de centavo por quilômetro rodado, o custo de sua vida- entregando revistas, flores, convites; contratos, casamentos, desquites; relatórios improváveis, polêmicas insolúveis, pacotes insondáveis; cocaína chutada, maconha prensada, laricas engraçadas... são inúmeras as atrações! O sigilo dos embrulhos é a alma dessas transações...
O estômago revirado de antiácidos, as narinas melecadas de monóxido, o pulmão enegrecido de fuligem, da velocidade a vertigem, dando coice nas lanternas apagadas, nos motoristas de domingo, o peito aflito e a cabeça chata como pára-choques, próteses enfiadas nas carnes esticadas, pinos espetados nos ossos da bacia, pontos avermelhados na carteira metida pelas nádegas, pedaleiras raspadas nas calçadas, as botas esfoladas, filando aperitivos em escritórios escusos, em casas de massagem, em postos de triagem, em grandes bacanais onde a bossa nova fica latejando nos metais...
Uma vontade de ficar parado contra a obrigação de estar partindo. É um homem do tempo. O tempo dos outros. Um tempo comprado e vendido. Um tempo roubado e perdido.
De licenciamento ultrapassado, seguro vencido, fugindo de blitz como o inimigo público número um, uma pá de receios por centímetro cúbico, puxando conversa com vigias entediados, secretárias ressentidas, menores abandonados; criando confusão, driblando postes de iluminação, segue servindo...
Sanduíches de um real engolidos no cruzamento, esse é o alimento; as costas comprometidas em lamento por buracos acertados, avançando contra velhas assustadas, as viseiras levantadas, dividindo a sua sina com outros ferrados num minuto de semáforo, desprezando ciclistas, desafiando os carros armados de seguranças descolados (quem tem aquilo, tem medo).
São suicidas escolados se jogando nas roletas das esquinas, encolhidos em seus corpos como aves de rapina, prontos pro bote, sorrindo quando filmados, comendo a grama dos acostamentos, tão inocentes quanto culpados, esnobando sinais codificados ao arrepio da lei e à revelia das placas sem sentido, intrometidos entre faixas, fluindo...
Porque a cidade não pode parar; porque negócios precisam ser feitos; porque as pizzas estão esfriando; porque os viciados estão implorando. Porque é preciso dar o que fazer a essa gente esfomeada, a cidade angustiada; porque os contratos estão se multiplicando e os compromissos se estreitando, lá vão eles, dançando feito bailarinos, como camundongos embriagados, feito assassinos, imitando sirenes nas avenidas congestionadas, enquanto amigos e parentes, descrentes de sua pouca sorte, pregam os olhos nos televisores de tragédias, onde os cadáveres imobilizados nas sarjetas embalam as tardes do planeta, comendo fragmentos asfaltados pra alegria dos paramédicos empregados... Morrendo na contramão, atrapalhando o tráfego.

Texto Anterior: Dança: Uma noite de Gala, uma noite de festa
Próximo Texto: Panorâmica - Evento 1: Instituto Pensarte elabora carta ao MinC
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.