São Paulo, quinta-feira, 09 de setembro de 2010

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CRÍTICA APICHATPONG WEERASETHAKUL

Cinema híbrido de tailandês tira forças da crise da razão

BERNARDO CARVALHO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O antropólogo francês Philippe Descola tem uma teoria genial sobre as formas como o homem lida com o que não é humano (plantas, animais e objetos).
É também a questão central dos filmes do tailandês Apichatpong Weerasethakul, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e convidado da 29ª Bienal de SP, que abre no dia 25.
Descola diz que até hoje a humanidade se relacionou com o não humano por meio de quatro sistemas. No animismo, característico dos indígenas da Amazônia, os espíritos tomam a forma de homens e animais.
No totemismo, característico dos aborígenes australianos, a identidade dos indivíduos é determinada pelas espécies animais e pelos territórios onde elas vivem.
No analogismo, característico de sociedades como a Índia e a China (e do Ocidente antes do renascimento), as identidades só podem se estabelecer por leis gerais, coercitivas e analógicas. É o caso do I Ching e da astrologia, que determinam correspondências arbitrárias entre as coisas mais díspares, como o movimento dos planetas e a sorte das pessoas.
Por último, o naturalismo, característico do Ocidente moderno, é o modo que permite pela primeira vez ao homem ver a natureza como "outro", distinta do humano, condição de possibilidade da ciência moderna.
Weerasethakul está na confluência dessas quatro cosmologias, entre o arcaico e o moderno, e por isso seus filmes são ao mesmo tempo tão fascinantes e tão enigmáticos. Segundo Descola, o mundo da razão já dá sinais de agonizar.
Com a globalização e o embaralhamento entre cultura e natureza, estaríamos passando, sob influência da Índia e da China, a um novo modo analógico.
Com os parâmetros da razão embaralhados, ficamos à mercê de novas leis arbitrárias para entender o mundo. É dessa crise que Weerasethakul tira a sua força.

ORDEM INSONDÁVEL
Há nos filmes, além de um humor peculiar e uma sexualidade à flor da pele, um mistério criado por uma expectativa sem ação e pela consequente suposição de uma ordem incompreensível.
À primeira vista, essa ordem insondável parece representar um sistema de pensamento que já não faz parte do mundo da razão.
Mas Weerasethakul estudou numa escola de cinema mais experimental, em Chicago, e a própria estranheza de seus filmes celebra a ideia de uma subjetividade autoral e de um humanismo que não podem ser incorporados simplesmente a um mundo analógico ou animista.
É um cinema híbrido que não se deixa compreender pelos parâmetros da razão, mas que depende deles para afirmar a sua radicalidade.
E é essa posição problemática de resistência que faz desse cineasta um dos casos mais inesperados e surpreendentes do cinema atual.


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