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"Mademoiselle Cinema" é best-seller moralista
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
É engraçado, para não dizer cômico, que um livro como "Mademoiselle Cinema", de Benjamim
Costallat, best-seller apreendido
nos anos 20 a pedido de uma certa
Liga da Moralidade que o considerou "pornográfico", possa ter
sido visto em algum momento da
história da humanidade como
imoral. Porque simplesmente não
poderia haver livro mais moralista do que este.
Costallat (1897-1961) era um homem de jornal, romancista, editor e cronista da vida carioca nos
anos 20, além de redator de publicidade, responsável pelos anúncios do pó-de-arroz Lady e do tônico Neurobiol, entre outros, como relata a pesquisadora Beatriz
Resende no prefácio à nova edição, sob os cuidados da Casa da
Palavra.
Lançado em 1923, "Mademoiselle Cinema" vendeu 75 mil exemplares em cinco anos, o maior sucesso editorial da época. Em 1924,
Carmen Santos deu início às filmagens de uma adaptação do romance, interrompidas definitivamente por um incêndio que destruiu os estúdios da atriz.
No mesmo ano, já na terceira
edição e com 25 mil exemplares
vendidos, "Mademoiselle Cinema" entra para a história das peculiaridades brasileiras: oficiais
da polícia, a pedido dessa nebulosa sociedade chamada Liga da
Moralidade, apreendem os três
únicos exemplares restantes em
uma livraria do centro do Rio,
prendendo ao mesmo tempo o
proprietário e seu assistente.
O episódio só pode ter feito bem
a esse livro de um moralismo provinciano e constrangedor, nem
que seja por tê-lo tornado curiosidade histórica, merecedor de uma
nova edição 75 anos depois de seu
lançamento, com a chancela de
vítima da censura, e fazê-lo passar
pelo que nunca foi, por obra escandalosa e progressista no seu
ataque à hipocrisia local.
A melhor definição das intenções do romance fica com o próprio autor, ao reagir ao episódio
da apreensão, em texto incluído
ao final da nova edição: "É em juízo que vou defender esta "Melle.
Cinema", produto do meu amor à
verdade, do meu desprezo pela
hipocrisia, da minha veneração
pela família brasileira, que eu quis
defender mostrando a nu a triste
época e os tristes costumes por
que passamos (...), porque o livro
nada tem de imoral".
O que é, afinal, esse "Mademoiselle Cinema" que defende a família brasileira ao pôr a nu os tristes
costumes da época?
O romance conta a história de
Rosalina, uma moça fútil, volúvel
e inconsequente de 17 anos, filha
de um político do Piauí que chegou a ministro, corrompida pelos
ares devassos do seu tempo e da
sua classe burguesa. Ao final de
seu mandato no governo, o pai de
Rosalina parte com mulher e filha
para Paris, onde vai acabar morrendo de um ataque, durante uma
de suas visitas vespertinas a bordéis.
Antes de descobri-lo morto na
cama de uma prostituta e chegar
ao arrependimento provocado
pela consciência da tragédia do
seu próprio destino, Rosalina ainda vai ter tempo de perder a virgindade para um escritor mais velho, no navio a caminho da Europa -e depois esnobá-lo, levando-o a afogar suas mágoas na cocaína- , e de aprontar tanto
quanto na inconstância dos seus
flertes cariocas.
Ao final, ela diz: "Não tenho culpa se sou assim (...). Essa necessidade de ter muitos amantes, como a de ter muitos vestidos novos, essa necessidade de prazer e
de luxo, deram-ma, como me podiam ter dado a necessidade de
ser honesta, de ter uns filhos e um
marido a quem eu quisesse com a
minha alma e com o meu coração
(...) desde criança, foram, pouco a
pouco, por uma sábia educação,
excitando todos os meus sentidos". Conclusão: É tudo uma
questão de educação.
"Mademoiselle Cinema" é um
romance didático, quase um manual corretivo. O objetivo de Costallat é denunciar a burguesia hipócrita valendo-se do mesmo
moralismo que ela usa para sustentar suas aparências. O livro inverte esse moralismo contra os
que o professam da boca para fora, mas não na prática. Só que
nessa inversão ele não condena o
moralismo, apenas ataca os "falsos moralistas" por não cumprirem a cartilha que defendem e,
com isso, acaba se tornando o
mais moralista de todos, uma espécie de inquisidor dos costumes
da época.
Para Costallat, por exemplo, todas as parisienses ou são putas ou
são peruas, e em geral as duas coisas, mulheres fúteis que vivem de
fazer compras e do dinheiro dos
amantes cujas "garçonnières" frequentam por algumas horas diárias. Paris torna-se, assim, uma
espécie de Sodoma e Gomorra,
um mal dos tempos a ser erradicado, modelo para a burguesia
brasileira corrompida e devassa.
Os únicos que se salvam dessa
bandalheira toda são os puros
operários que acordam cedo (enquanto a parisiense -leia-se puta- dorme) e vão trabalhar "rindo, alegres, barulhentos. A vida
recomeça! E com a vida, o sol e o
trabalho. Os pulmões enchem-se
de ar puro. Os homens estão contentes e as próprias cousas parecem sorrir".
É difícil imaginar um ponto de
vista mais retrógrado, provinciano, misógino e machista, ainda
mais quando se pensa que, exatamente na mesma época e graças a
uma certa liberalidade desfrutada
pelos artistas e intelectuais devassos dessa Sodoma que Costallat
tanto condena, um sujeito chamado James Joyce estava publicando o seu "Ulysses", este sim
um romance do seu tempo e uma
vítima real da censura.
Avaliação:
Livro: Mademoiselle Cinema
Autor: Benjamim Costallat
Lançamento: Casa da Palavra
Quanto: R$ 24 (168 págs.)
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