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FERREIRA GULLAR
O jogo da semântica
Gostaria de esclarecer ao
leitor que, quando aqui publiquei a crônica "Alguém fala errado?", não pretendi me arvorar
em defensor radical do purismo
lingüístico, que não sou, primeiro
porque, em matéria literária, estou mais para os poemas sujos do
que para os limpos e, depois, por
não ter mesmo competência para
isso. Respeito os filólogos, os lingüistas e os gramáticos; embora
nem sempre concorde com eles,
estou convencido do papel importante que desempenham no conhecimento e preservação de valores fundamentais de nosso universo cultural, de que a língua é
uma das vigas mestras.
Também falo errado, também
escrevo errado, mas fiquem certos
de que faço um grande esforço para, sem arrogância, falar e escrever o menos errado possível. Incomoda-me, por isso mesmo, o desmazelo no uso da nossa língua como também a complacência com
esses erros. Decididamente, não
aceito que se dê como certo escrever nos jornais e falar na televisão
coisas como "as milhões de pessoas" ou "um dos que fez". Causa-me certo mal-estar o uso pedante
de expressões como "isso não significa dizer", quando todos falamos em nossas conversas e a cada
momento "isso não quer dizer".
Sei que o mundo não vai acabar
se muita gente teimar em cometer
tais atentados à boa maneira de
usar o idioma, mas tenho também o direito de manifestar meu
desagrado. Se criticamos os erros
dos governantes, dos deputados,
dos juízes de futebol, que desrespeitam a ética, por que não podemos criticar os erros -ainda que
muitíssimo menos graves- de escritores, locutores, jornalistas, advogados, economistas, que desrespeitam a gramática?
Tampouco me tenho como um
feroz inimigo do uso de palavras e
expressões estrangeiras, quando
impostas por necessidades da própria vida, em razão do surgimento de novas tecnologias ou novos
hábitos. E também sei que certas
expressões, depois de nos irritarem por algum tempo, desaparecem tão de repente quanto apareceram. Lembram-se da expressão
"a nível de"? Não sei por que cargas d'água se começou a usar essa
expressão espanhola para tudo e
da maneira mais arbitrária, como, por exemplo, "a nível de carros de corrida" ou "a nível de poluição" ou, num programa de culinária na televisão, "a nível de
carne-seca com abóbora, o melhor tempero é..."
Devo admitir que os lingüistas
têm razão quando adotam uma
visão aberta com respeito às normas lingüísticas e gramaticais,
compreendendo que o idioma é
um organismo vivo, em permanente mutação. Pode ser que ainda reste em mim um pouco da
convicção do menino que, por ter
tirado 9,5 e não 10, na redação sobre o Dia do Trabalho, devido a
dois erros de português na dissertação, decidiu estudar gramática
dia e noite, já que sonhava ser escritor e escritor não pode escrever
errado... Nisso consumi uns dois
anos, sem ler outra coisa. Muito
aprendi na "Gramática Expositiva", de Eduardo Carlos Pereira,
na "Gramática da Língua Portuguesa", de Carlos Góis, e em
"Através do Dicionário e da Gramática", de Mário Barreto... Já
não me lembro de nada do que li
porque, como já disse aqui, uma
de minhas características é esquecer quase tudo o que leio, pois, ao
que parece, certas coisas não me
ficam na mente, mas talvez disseminadas na pele ou nos cabelos.
Estou convencido de que a gente inventa a fala a cada momento, a cada pergunta que nos fazem ou idéia que queremos comunicar. Algumas expressões estão prontas, são lugares-comuns,
mas é fato também que optamos
em usá-las ou não no momento
mesmo de falar. Em sua maioria,
as frases que emitimos as inventamos na hora. Se alguém me pergunta se quero ir ao cinema e a
resposta é negativa, tanto poderei
dizer "Não, não vou", ou "Não
quero" ou "Hoje não dá" ou...
Agora mesmo, ao escrever esta
crônica, não sabia de antemão
que forma tomaria esta frase que
escrevo -ou invento- neste instante mesmo. De fato, escrever,
falar é improviso.
A referida crônica aqui publicada foi mais um desabafo, sem a
pretensão de ensinar o bom português a ninguém, muito menos
aos estudiosos da língua. A mim
também desagrada o excesso de
imposição, de regras, e mais ainda a pretensão dos que se consideram mestres da língua. Não por
acaso, sou o autor daquele aforismo que diz "a crase não foi feita
para humilhar ninguém" e daquele outro -que vale aqui como
autocrítica-, "quem tem frase
vidro não joga crase na frase do
vizinho".
Tampouco desejo para mim o
papel dos que acham que nada há
de novo sob o sol e que tudo o que
foge a seu conhecimento não é
mais que ilusória novidade. Não,
não sou como o dr. Fontes, escritor da Província, advogado e poeta parnasiano, que, após ouvir a
conferência de um intelectual do
Rio sobre a semântica como instrumento de crítica literária -e
sem entender patavina do assunto-, pediu a palavra e falou:
"Que me desculpe o ilustre professor, mas o que acaba de nos dizer
não é nenhuma novidade. Como
já dizia Olavo Bilac, "pois só quem
ama pode ter ouvido...'". E começou ondular os braços no ar.
"Olha o jogo da semântica!... "capaz de ouvir e de entender estrelas"..." Olha o jogo da semântica!
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