São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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FERREIRA GULLAR

O jogo da semântica

Gostaria de esclarecer ao leitor que, quando aqui publiquei a crônica "Alguém fala errado?", não pretendi me arvorar em defensor radical do purismo lingüístico, que não sou, primeiro porque, em matéria literária, estou mais para os poemas sujos do que para os limpos e, depois, por não ter mesmo competência para isso. Respeito os filólogos, os lingüistas e os gramáticos; embora nem sempre concorde com eles, estou convencido do papel importante que desempenham no conhecimento e preservação de valores fundamentais de nosso universo cultural, de que a língua é uma das vigas mestras.
Também falo errado, também escrevo errado, mas fiquem certos de que faço um grande esforço para, sem arrogância, falar e escrever o menos errado possível. Incomoda-me, por isso mesmo, o desmazelo no uso da nossa língua como também a complacência com esses erros. Decididamente, não aceito que se dê como certo escrever nos jornais e falar na televisão coisas como "as milhões de pessoas" ou "um dos que fez". Causa-me certo mal-estar o uso pedante de expressões como "isso não significa dizer", quando todos falamos em nossas conversas e a cada momento "isso não quer dizer". Sei que o mundo não vai acabar se muita gente teimar em cometer tais atentados à boa maneira de usar o idioma, mas tenho também o direito de manifestar meu desagrado. Se criticamos os erros dos governantes, dos deputados, dos juízes de futebol, que desrespeitam a ética, por que não podemos criticar os erros -ainda que muitíssimo menos graves- de escritores, locutores, jornalistas, advogados, economistas, que desrespeitam a gramática?
Tampouco me tenho como um feroz inimigo do uso de palavras e expressões estrangeiras, quando impostas por necessidades da própria vida, em razão do surgimento de novas tecnologias ou novos hábitos. E também sei que certas expressões, depois de nos irritarem por algum tempo, desaparecem tão de repente quanto apareceram. Lembram-se da expressão "a nível de"? Não sei por que cargas d'água se começou a usar essa expressão espanhola para tudo e da maneira mais arbitrária, como, por exemplo, "a nível de carros de corrida" ou "a nível de poluição" ou, num programa de culinária na televisão, "a nível de carne-seca com abóbora, o melhor tempero é..."
Devo admitir que os lingüistas têm razão quando adotam uma visão aberta com respeito às normas lingüísticas e gramaticais, compreendendo que o idioma é um organismo vivo, em permanente mutação. Pode ser que ainda reste em mim um pouco da convicção do menino que, por ter tirado 9,5 e não 10, na redação sobre o Dia do Trabalho, devido a dois erros de português na dissertação, decidiu estudar gramática dia e noite, já que sonhava ser escritor e escritor não pode escrever errado... Nisso consumi uns dois anos, sem ler outra coisa. Muito aprendi na "Gramática Expositiva", de Eduardo Carlos Pereira, na "Gramática da Língua Portuguesa", de Carlos Góis, e em "Através do Dicionário e da Gramática", de Mário Barreto... Já não me lembro de nada do que li porque, como já disse aqui, uma de minhas características é esquecer quase tudo o que leio, pois, ao que parece, certas coisas não me ficam na mente, mas talvez disseminadas na pele ou nos cabelos.
Estou convencido de que a gente inventa a fala a cada momento, a cada pergunta que nos fazem ou idéia que queremos comunicar. Algumas expressões estão prontas, são lugares-comuns, mas é fato também que optamos em usá-las ou não no momento mesmo de falar. Em sua maioria, as frases que emitimos as inventamos na hora. Se alguém me pergunta se quero ir ao cinema e a resposta é negativa, tanto poderei dizer "Não, não vou", ou "Não quero" ou "Hoje não dá" ou... Agora mesmo, ao escrever esta crônica, não sabia de antemão que forma tomaria esta frase que escrevo -ou invento- neste instante mesmo. De fato, escrever, falar é improviso.
A referida crônica aqui publicada foi mais um desabafo, sem a pretensão de ensinar o bom português a ninguém, muito menos aos estudiosos da língua. A mim também desagrada o excesso de imposição, de regras, e mais ainda a pretensão dos que se consideram mestres da língua. Não por acaso, sou o autor daquele aforismo que diz "a crase não foi feita para humilhar ninguém" e daquele outro -que vale aqui como autocrítica-, "quem tem frase vidro não joga crase na frase do vizinho".
Tampouco desejo para mim o papel dos que acham que nada há de novo sob o sol e que tudo o que foge a seu conhecimento não é mais que ilusória novidade. Não, não sou como o dr. Fontes, escritor da Província, advogado e poeta parnasiano, que, após ouvir a conferência de um intelectual do Rio sobre a semântica como instrumento de crítica literária -e sem entender patavina do assunto-, pediu a palavra e falou: "Que me desculpe o ilustre professor, mas o que acaba de nos dizer não é nenhuma novidade. Como já dizia Olavo Bilac, "pois só quem ama pode ter ouvido...'". E começou ondular os braços no ar. "Olha o jogo da semântica!... "capaz de ouvir e de entender estrelas"..." Olha o jogo da semântica!

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