São Paulo, segunda-feira, 09 de outubro de 2006

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NELSON ASCHER

O "tao" do menor esforço


Livro que se tornou sagrado na antiga China tem 81 capítulos, cada qual um breve poema

A POESIA aparentemente não passa de um caso especial da prosa. Como esta, aquela consiste em alinhavar palavras obedecendo a tais ou quais regras, só que, no seu caso, existiriam algumas suplementares. Descontadas estas, não haveria nada próprio à poesia que a prosa não pudesse fazer.
Caso aprofundemos nosso foco, porém, perceberemos que o problema colocou-se em geral de modo distinto. Tradicionalmente, a poesia é antes o contrário da prosa. Nesta, o conteúdo é mais importante que a forma, enquanto naquela o que vale é o oposto. Os recursos naturais da poesia, a começar pela repetição de sons, são vícios na boa prosa. Se o prosador luta contra sua língua até domá-la, o poeta a deixa ditar-lhe inclusive o que dirá.
Essa distinção é importante para quem procure compreender não a "mensagem", mas a natureza do "Tao Te Tching".
Remontando ao século 4º a.C., o livro que se tornou sagrado na antiga China consiste em 81 capítulos, cada qual um breve poema mais ou menos independente. Nunca se chegará, em outros idiomas, a um acordo acerca do significado nem de "tao" nem de "te", de modo que muitas versões preferem nem traduzir o primeiro termo. Durante sua trajetória, a obra foi dividida arbitrariamente em duas metades, o "Livro do Tao" e o "Livro do Te". Achados arqueológicos recentes subverteram tudo isso.
Quando alguém que não sabe chinês, como eu, lê o livro, o que salta aos olhos é que, nas centenas de traduções publicadas no Ocidente, nada, a partir do primeiro verso, parece coincidir. Cada linha de cada versão, mesmo as mais respeitáveis, diz, se comparada com as das demais, algo diferente e, não raro, até o oposto. Como é possível? Que tipo de livro sagrado é esse? Será ele obscuro demais ou seus intérpretes é que são incompetentes?
Nem um, nem outro. Acontece que a maioria busca extrair da obra afirmações prosaicas, enquanto o que ela oferece é uma sucessão, acumulada durante séculos e, em parte, por acaso, de trocadilhos, jogos de palavras e conceitos, "doubles entendres", respostas ambíguas como as da Pitonisa. Sendo o chinês uma língua analítica ou isolante cujas palavras existem, por assim dizer, em estado puro, sem marcação morfológica, quase tudo nele é determinado pelo contexto e pela ordem. Pequenas alterações nesta acarretam mudanças sísmicas de sentido.
Malgrado tamanho vaivém de significados oscilantes, um conselho perpassa o livro inteiro, a saber, o de sempre poupar energia, algo que faz sentido tanto numa sociedade agrária quanto, em tempos de petróleo caro, na nossa. E, se os ensinamentos do "Tao Te Tching" se aplicam às mais diversas esferas, tudo indica que, ao tomar forma, ele servia de breviário político com o qual eruditos itinerantes buscavam emprego de conselheiros nas diversas cortes em contínuo atrito nas quais se subdividia uma China ainda não unificada. Em condições tais, quando cabeça alguma se colava firmemente ao pescoço, a ambigüidade do livrinho podia às vezes salvar o mensageiro da ira de usuários malogrados.
Traduzir, num português plausível, esse clássico é minha resolução (precoce) de ano novo. Em vez de desdobrá-lo, oferecendo em seguida uma interpretação do que julguei (através das traduções acessíveis, análises, exegeses, versões interlineares etc.) ter visto ali, minha intenção é a de oferecer ao leitor as ambigüidades, o leque aberto das incertezas, não tornando mais preciso o que é de propósito impreciso, nem atribuindo um sentido fixo ao que pode ter inúmeros e vagos. O melhor modo de alcançar tal resultado é seguir a lição central, isto é, curvar-se à lei do menor esforço, só que não trabalhando menos, mas buscando contrariar o menos possível a natureza de nossa língua. Minha tradução vai se chamar "Roteiro da Retidão" e o que segue são seu primeiro e último capítulos.
1) A rota dita nunca/ é a rota que condiz/ o nome que a nomeia/ tampouco é o renomado/ se anônima é raiz/ de terra e céu/ nomeando-se é matriz/ dos seres mil/ quem nada anseia/ discerne o cerne/ ansiosos nada/ vêem fora o externo/ unidos que eram/ se nomes os desunem/ reúne-os serem/ obscuros e entre/ obscuridades/ tais é que se acha/ o umbral de todo/discernimento.
81) Verdades desagradam/ inverdades agradam/ o certo é inconvincente/ o convincente é incerto/ o culto não ostenta/ o ostentador é inculto/ quem sabe não o oculta/ quanto mais doe mais tem/ pois dividindo soma/ a rota celestial/ traz dita não desdita/ quem sabe atém-se à rota/ atuando sem atrito.


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