São Paulo, quinta-feira, 09 de outubro de 2008

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NINA HORTA

Philip Roth e o filho do açougueiro


O garoto ficou mestre em fazer uma coroa de costeletas de cordeiro. E a ter paciência com as clientes exigentes

SEMPRE GOSTEI de Philip Roth, mas só uma vez na vida e outra na morte ele fala de comida. E a cada livro que aparece os críticos dizem que é o último, que Roth está velho, que se aposentou, não tem mais a força de antes, e eu fico triste.
No último, que saiu outro dia mesmo, o título por si já anunciava uma despedida, "Exit Ghost". Pois nem bem o fantasma deu as costas e já aparece outro livro, "Indignation".
O homem é um azougue, fênix jovem, batendo as asas sacudindo as cinzas. Gostei. E tem comida!
O protagonista é filho de um açougueiro kosher de Newark, um menino exemplar. Fazia as entregas de bicicleta, desde garoto, nas horas de folga da escola. Foi justamente na sua adolescência que o açougue começou a decair por causa do novo supermercado, com seus preços mais baixos, e do menor números de famílias que continuavam a manter uma cozinha kosher. Kosher de verdade, como a loja do pai, com supervisão de rabino e membro da Federação de Açougueiros kosher de Nova York.
O garoto foi crescendo em sabedoria como em idade, aprendendo a moer carne, a jogar serralha no chão, acabar de depenar pescoço de galinhas. Ficou mestre em fazer uma coroa de costeletas de cordeiro ou em cortá-las, uma a uma. E principalmente a ter paciência com as clientes exigentes demais, que o faziam levantar o frango a toda altura, para observarem por baixo se realmente estava limpo.
Tirar as penas não era nada comparado a eviscerar aqueles frangos.
Abria um pouco o curanchim, enfiava a mão e puxava as vísceras gosmentas. As compradoras, de uma exigência sem fim, puseram para fora um dos velhos empregados, que perdeu a paciência com uma delas que diariamente tinha que cheirar o bico e o curanchim da galinha. Ele, exausto daquele ritual, teve a petulância de perguntar se ela própria passaria por aquele teste diário.
Mas o que dava mais prazer ao menino era arrumar as vitrines com bastante gelo, carnes e... samambaias. Não contente com tantos dons, o pai fez questão que ele aprendesse a comprar e levava-o ao mercado. Ficava mais barato comprar grandes pedaços de carne e cortá-los em casa. E o menino, acabado o trabalho, limpava as tábuas com serralha e esfregava com uma dura escova de ferro, tirando todo o sangue que escorria pelas frinchas quando a carne era atingida pelo cutelo pesado.
Meses depois de entrar na faculdade, ele ainda sonhava com a facas afiadas e usava-as nos sonhos para matar chineses na Coréia. Só ele sabia como aquelas armas podiam ser assassinas. E entendia de sangue, profundamente.
O sangue sempre encrustado no pescoço das galinhas mortas segundo o ritual, pingando da carne quando era separada dos ossos, encharcando devagar os sacos de papel pardo protegidos por papel manteiga. Crescera entre o sangue e a gordura, entre facas e afiadores, máquinas e dedos cortados.
E sempre havia sangue no chão de madeira atrás da geladeira, nas balanças, nas beiradas dos rolos de papel, no nariz da mangueira com que limpava o chão da câmara fria -e o cheiro de sangue era a primeira coisa que lhe aflorava às narinas quando visitava os tios e parentes açougueiros, aquele cheiro de carcaça crua que já fazia parte dele.
Jamais aprendeu a lidar ou se acostumar com o sangue, ou a ficar indiferente a ele.
Talvez por isso queria evitar ser chamado para a Coréia com medo que fizessem com ele o mesmo que fazia à carne kosher. E não entendia também a cicatriz suicida nos pulsos da namorada. Sangue, sempre sangue. E daí, acabou a parte de comida.
Para quem gosta de Roth, podem comprar o livro, o homem voltou inteiro. E já deve estar preparando outro, sutil, objetivo, trágico e cômico.

ninahorta@uol.com.br


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