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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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CRÍTICA

A dança de são Guido do consumo

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

O rosto que mais chama a atenção na TV hoje não é de nenhuma estrela da novela da Globo, nem de nenhum desses apresentadores do mundo cão, nem de nenhuma gostosa-famosa que balbucia platitudes diante das câmeras. É de Fabiano Augusto, um ator paulistano de 28 anos, que aparece nos intervalos comerciais com gestos enfáticos e repetitivos, esgar de psicótico, repetindo o bordão "Quer pagar quanto?" nos anúncios das Casas Bahia.
Ele é um achado, de fato. Tem a cara do seu vizinho, do caixa do seu banco, daquele sujeito que você encontra todo dia no caminho para o trabalho. Nos diversos anúncios que já protagonizou, ele inventou uma gesticulação característica, frenética, olhos arregalados, sorriso congelado no rosto e toda a fala pontuada por uma movimentação incessante de braços e mãos.
Seu papel é basicamente o do chato, do sujeito insistente no limite da inconveniência, do cara que mete o nariz onde não é chamado. Ele não está caracterizado como vendedor, mas sua fala é daquele vendedor que faz de tudo para convencer, que procura derrubar um a um os argumentos da prudência.
Uma mulher examina um armário, uma garota olha para alguns celulares... Eis que ele aparece, feito um boneco de mola, movendo os braços feito um maluco, num tom de voz que só por alguns decibéis não é o do grito a espantar quaisquer hesitações: quer pagar quanto, quer pagar quando?
A mensagem é clara: sim, nós sabemos que você está sem dinheiro, mas seu engano é achar que é preciso dinheiro para consumir nas Casas Bahia. Não, basta seu desejo de consumir, o resto deixa com a gente. O que move o consumo é o desejo, que rege, naturalmente, a escolha do produto, mas também, de acordo com essa publicidade, quanto e quando pagar. Onde há desejo, há poder: "Aquilo que você quer, aqui você pode".
O único interdito é recusar-se a comprar, portanto, não querer pagar nem uma prestaçãozinha sequer, hipóteses inteiramente afastadas com o frenesi dos movimentos do garoto-propaganda. O personagem sem nome transfigura-se nessa dança de são Guido do consumo, agitando-se de comprador em comprador, de produto em produto, como a afirmar que não importa o tamanho da crise, a falta de dinheiro; é preciso manter a roda do comércio em funcionamento.
O "Bahia" encarna, dá feição e voz à histeria, parece ter tomado todo o espaço de publicidade do chamado horário nobre, invadido por anúncios de ofertas de hiper e supermercados, do varejão de eletrodomésticos e móveis. Disputando a tapas os parcos caraminguás que estão nos bolsos e nas contas de banco dos telespectadores, a publicidade se vê desnudada de toda a sua pretensão criativa e artística e reduzida ao seu mínimo denominador: comprem, por favor.


@ - biabramo.tv@uol.com.br


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