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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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Autores franceses discutem tecnofilosofia de "Matrix" em livro

Máquinas de mitos

Divulgação
Cena de "Matrix Revolutions', último filme da trilogia discutida no livro "Matrix Machine Philosophique', escrito sob orientação de Alain Badiou


PHILIPPE AZOURY
DIDIER PERON
DO "LIBÉRATION"

No livro coletivo "Matrix Machine Philosophique", Elie During fala do filme dos irmãos Wachowski como um objeto saturado de referências mitológicas, religiosas, científicas, literárias e, é claro, cinematográficas. Debatendo-se numa grande tempestade, esses pedacinhos de cultura grega, trechos da Bíblia, mantras, Philip K. Dick, Jean Baudrillard e Gilles Deleuze, mas também de elementos de ficção científica e filme de kung fu, "Matrix" se apresenta como uma cacofonia babélica. O que se pode encontrar no acoplamento de samples visuais de "Matrix"?
Para começar, é claro, os perfis dos heróis que formam o exército de sombras, vestidos de longos casacos de couro e de óculos escuros. Eles remetem grosso modo a tudo o que o cinema asiático recente conseguiu tomar de Melville, à frieza metálica e puro-sangue do Delon de "Samurai" e também aos terrores do "delirium tremens" de Yves Montand em "O Círculo Vermelho". Moral: na Matrix, assim como em Hollywood, tudo é duplicável, digerível e remixável, desde que se exagerem todos os elementos.
Vale notar que essa concretude dos estilos de onde esses elementos vêm diz muito sobre o que resta, em última análise, de 40 anos de modernidade cinematográfica na qual todas as fronteiras foram abolidas: um élan de Sergio Leone, alguns tiques melvillianos, uma utopia de corpos nascidos nos bazares orientais do subcinema de ação asiático. O que mais? Um céu encharcado de eletrônicos verdes vindos de lugares tão distantes como "Blade Runner", de Ridley Scott, uma arquitetura de cidade indo-futurista herdada diretamente da "Metrópolis", de Fritz Lang, monstros metálicos saídos de "O Império Contra-Ataca" e os robôs de direção assistida de "Alien 2". A reflexão sobre o virtual inspirada nas ruminações de Cronenberg e de toda uma hoste de filmes que evocam a ausência de separação entre os mundos. Apesar disso, perceberemos a invenção de um novo perfil de personagem pálido, cabelos molhados penteados para trás, ao estilo Kraftwerk, as feições do rosto saltadas como as de um junkie potencial flagrado enquanto está chapado e em perpétuo estado de carência. Todos esses elementos só assumem seu valor quando são conectados uns aos outros e fundidos no cadinho numérico.
A seguir, trechos da entrevista com o filósofo Elie During, professor na Universidade de Paris 10-Nanterre e coordenador de "Matrix Machine Philosophique", escrito por jovens professores de filosofia sob a orientação ativa de Alain Badiou.

 

Pergunta - Por que "Matrix" é compartilhado por uma comunidade tão grande de espectadores?
Elie During -
Sem dúvida porque é uma máquina mitológica. O filme não fabrica mitos modernos, como fazia "Guerra nas Estrelas", atualizando a tragédia, mas procura realizar uma operação que se enquadra bastante bem na definição que Claude Lévi-Strauss dava do mito: uma construção simbólica que torna equivalentes uma multidão de códigos culturais. "Matrix" joga sobre uma equivalência geral e, com isso, produz um espaço para um discurso comum, um gozo comum.

Pergunta - Essa salada de filosofias não cria problemas, por exemplo, com Baudrillard condenando o uso de sua tese sobre simulacro?
During -
Justamente, seguindo os passos dele, a maior parte da crítica censurou "Matrix" por tratar temas intelectuais de maneira superficial. Com isso, ela queria falar em nome dos filósofos. Estes, excetuando Baudrillard citado na contramão, não tinham nada a censurar no filme. Por quê? Porque, para um filósofo, "Matrix" não é um filme filosófico. Os irmãos Wachowski falaram de um filme "de ação intelectual", mas, para um filósofo, "Matrix" é bem menos interessante quando acredita filosofar abertamente do que quando parte para algo especificamente cinematográfico ou coreográfico.

Pergunta - Como um filósofo se liga a "Matrix"?
During -
Antes de mais nada, evitando assumir a postura superior de intelectual estudando um objeto pobre e aproveitando para dar uma lição sobre ele. "Matrix" exige que o filósofo engrene a marcha de seu funcionamento, que se debruce sobre a máquina, que jogue seu jogo por inteiro. Nos campi universitários dos EUA e da Inglaterra, "Matrix" provocou uma atividade teórica e interpretativa bastante intensa. Não se trata de saber se é a Filosofia com "f" maiúsculo, mas de constatar a energia e o desejo teórico que "Matrix" desencadeou. Desse momento em diante não se trata mais de enxergar Platão num filme de kung fu, mas de introduzir o kung fu na caverna de Platão, de observar como esse filme consegue produzir efeitos filosóficos enquanto se movimenta, desregula, sampleia.


Tradução Clara Allain

MATRIX MACHINE PHILOSOPHIQUE. Ed. Ellipses, 192 págs., 12 euros (aproximadamente R$ 40). Onde encontrar: www.alapage.com.



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