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BERNARDO CARVALHO
Através do espelho
Marjane Satrapi, 34, é um
sucesso mundial. Os quatro volumes de "Persépolis"
(2000-2003), quadrinhos que misturam história do Irã, autobiografia, exílio e saga familiar, venderam 250 mil exemplares na
França (onde a autora, que é iraniana, se instalou há 14 anos), foram adotados por várias universidades americanas, a começar
por Yale, e já podem ser lidos em
português (o primeiro volume
acaba de sair no Brasil) e em árabe. A série deve virar desenho animado no ano que vem.
Ao contrário dos casos de surpreendente sucesso editorial que
estão para além do bom senso, o
de Marjane Satrapi, além de merecido, tem uma explicação objetiva. "Persépolis" não foi escrito
para iranianos. A autora queria
contar sua vida aos amigos europeus. Começou a publicá-la nas
páginas do jornal "Libération". O
ponto de vista autobiográfico, associando a memória familiar à
história do Irã, resultou numa
identificação imediata do leitor
estrangeiro.
Pelos olhos da menina (uma espécie de Alice no país dos persas
ou de Mafalda memorialista), e
depois pelos da adolescente e da
mulher exilada, o leitor estrangeiro atravessa o espelho, ultrapassa
o que lhe parecia intransponível,
passa a ver as coisas do outro lado
e a se sentir familiar num mundo
estranho. É levado a entender por
fim, pelos olhos de uma criança, o
que significou ser iraniano antes,
durante e depois da revolução islâmica.
Para um americano que se lembra apenas dos reféns e da ocupação da embaixada americana por
estudantes islâmicos em Teerã,
por exemplo, "Persépolis" é uma
forma de reviver os fatos às avessas e de entender que, por trás do
que hoje ouve chamar de "eixo do
mal", existe uma história trágica,
além de dramas pessoais e familiares (que estranhamente não
lhe parecem nada estranhos) e de
muito humor.
Há um mês, Marjane Satrapi
lançou "Poulet aux Prunes"
("Frango com Ameixas") na
França. Em "Persépolis", a narrativa era cronológica. Agora, para
contar os oito dias que precedem
a morte de um homem desencantado com a vida, em 1958, a autora experimenta com o tempo, para a frente e para trás, e reforça o
sentido romanesco que já estava
presente de modo menos manifesto nos livros precedentes.
As histórias familiares ainda
são a fonte, ao que parece inesgotável -o que Satrapi chama de
sua "memória genética". A ficção
é incidental, vem mais pela forma
de contar do que pelo conteúdo:
Nasser Ali, um músico exímio,
tio-avô da autora, decide morrer
depois de a mulher quebrar o seu
"tar" (instrumento de cordas tradicional no Irã) durante uma discussão entre os dois.
Em entrevista à revista "Les
Inrockuptibles", Marjane Satrapi
disse que ""Poulet aux Prunes" é
um livro sobre o prazer". Na verdade, o livro é de uma tristeza
profunda. Nasser Ali procura em
vão substituir o "tar" quebrado:
"Minha vida é esse instrumento.
Só penso nele". Desespera-se, mas
não se mata. Espera a morte. E
ela aparece em oito dias.
A tristeza vem dos desencontros
afetivos, dos mal-entendidos, da
incompreensão. A arte também.
Quando a autora diz que seu livro é "sobre o prazer", não está
enganada. Na juventude, conversando com o mestre que lhe ensina os mistérios e a técnica do
"tar", Nasser Ali lhe fala de um
amor impossível. O mestre lhe diz
que o sofrimento dos desencontros é a condição da arte, que o
amor impossível se traduzirá na
música e lhe dá de presente o
"tar" que a mulher acabará quebrando.
Depois de dois dias trancado no
quarto, Nasser Ali recebe a visita
da mulher com um prato de frango com ameixas, o seu predileto,
como uma forma de aproximação, de trégua entre os dois, mas
já não consegue comer. Perdeu "o
gosto, o sabor, o prazer". A mulher fala com nostalgia do tempo
em que se conheceram, mas as
lembranças dela fazem Nasser Ali
lembrar de outra mulher, justamente aquela que ele tentava esquecer quando se casou. "As únicas histórias de amor que permanecem são as que acabam mal",
disse a autora para a "Les Inrockuptibles".
Consciente dessa ambigüidade
entre prazer, sofrimento e arte,
Marjane Satrapi não perde o humor na desgraça. Numa das idas
e vindas que a narrativa faz no
tempo, ela assume o humor negro
do seu lado Poliana: mostra o futuro do filho de quem Nasser Ali
menos gostava, agora chefe de
uma família obesa e idiotizada
na Califórnia. E diz que, se tivesse
sobrevivido para conhecer a família do filho, o músico certamente teria morrido de um câncer, de maneira muito mais lenta
e penosa.
Passar para o outro lado do espelho é ser capaz de inverter o que
era preto e o que era branco, não
recusar as contradições nem as
complexidades históricas ou sentimentais. No seu caminho para a
morte, Nasser Ali se lembra da
mãe doente em seus últimos dias
de vida. O músico não era nem de
longe o filho preferido da mãe.
Mesmo assim, rezava sem parar,
em segredo, para que ela não
morresse. Um dia, a mãe o chama
e diz: "Eu só quero morrer e as
suas preces não me deixam partir
para o outro mundo". Na espera
da morte, Nasser Ali também desconfia que alguém esteja rezando
por ele. Só não pode imaginar que
seja o filho que ele mais detesta, o
mesmo que se tornará chefe de
uma família obesa e idiotizada
na Califórnia.
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