São Paulo, terça-feira, 09 de novembro de 2004

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BERNARDO CARVALHO

Através do espelho

Marjane Satrapi, 34, é um sucesso mundial. Os quatro volumes de "Persépolis" (2000-2003), quadrinhos que misturam história do Irã, autobiografia, exílio e saga familiar, venderam 250 mil exemplares na França (onde a autora, que é iraniana, se instalou há 14 anos), foram adotados por várias universidades americanas, a começar por Yale, e já podem ser lidos em português (o primeiro volume acaba de sair no Brasil) e em árabe. A série deve virar desenho animado no ano que vem.
Ao contrário dos casos de surpreendente sucesso editorial que estão para além do bom senso, o de Marjane Satrapi, além de merecido, tem uma explicação objetiva. "Persépolis" não foi escrito para iranianos. A autora queria contar sua vida aos amigos europeus. Começou a publicá-la nas páginas do jornal "Libération". O ponto de vista autobiográfico, associando a memória familiar à história do Irã, resultou numa identificação imediata do leitor estrangeiro.
Pelos olhos da menina (uma espécie de Alice no país dos persas ou de Mafalda memorialista), e depois pelos da adolescente e da mulher exilada, o leitor estrangeiro atravessa o espelho, ultrapassa o que lhe parecia intransponível, passa a ver as coisas do outro lado e a se sentir familiar num mundo estranho. É levado a entender por fim, pelos olhos de uma criança, o que significou ser iraniano antes, durante e depois da revolução islâmica.
Para um americano que se lembra apenas dos reféns e da ocupação da embaixada americana por estudantes islâmicos em Teerã, por exemplo, "Persépolis" é uma forma de reviver os fatos às avessas e de entender que, por trás do que hoje ouve chamar de "eixo do mal", existe uma história trágica, além de dramas pessoais e familiares (que estranhamente não lhe parecem nada estranhos) e de muito humor.
Há um mês, Marjane Satrapi lançou "Poulet aux Prunes" ("Frango com Ameixas") na França. Em "Persépolis", a narrativa era cronológica. Agora, para contar os oito dias que precedem a morte de um homem desencantado com a vida, em 1958, a autora experimenta com o tempo, para a frente e para trás, e reforça o sentido romanesco que já estava presente de modo menos manifesto nos livros precedentes.
As histórias familiares ainda são a fonte, ao que parece inesgotável -o que Satrapi chama de sua "memória genética". A ficção é incidental, vem mais pela forma de contar do que pelo conteúdo: Nasser Ali, um músico exímio, tio-avô da autora, decide morrer depois de a mulher quebrar o seu "tar" (instrumento de cordas tradicional no Irã) durante uma discussão entre os dois.
Em entrevista à revista "Les Inrockuptibles", Marjane Satrapi disse que ""Poulet aux Prunes" é um livro sobre o prazer". Na verdade, o livro é de uma tristeza profunda. Nasser Ali procura em vão substituir o "tar" quebrado: "Minha vida é esse instrumento. Só penso nele". Desespera-se, mas não se mata. Espera a morte. E ela aparece em oito dias.
A tristeza vem dos desencontros afetivos, dos mal-entendidos, da incompreensão. A arte também. Quando a autora diz que seu livro é "sobre o prazer", não está enganada. Na juventude, conversando com o mestre que lhe ensina os mistérios e a técnica do "tar", Nasser Ali lhe fala de um amor impossível. O mestre lhe diz que o sofrimento dos desencontros é a condição da arte, que o amor impossível se traduzirá na música e lhe dá de presente o "tar" que a mulher acabará quebrando.
Depois de dois dias trancado no quarto, Nasser Ali recebe a visita da mulher com um prato de frango com ameixas, o seu predileto, como uma forma de aproximação, de trégua entre os dois, mas já não consegue comer. Perdeu "o gosto, o sabor, o prazer". A mulher fala com nostalgia do tempo em que se conheceram, mas as lembranças dela fazem Nasser Ali lembrar de outra mulher, justamente aquela que ele tentava esquecer quando se casou. "As únicas histórias de amor que permanecem são as que acabam mal", disse a autora para a "Les Inrockuptibles".
Consciente dessa ambigüidade entre prazer, sofrimento e arte, Marjane Satrapi não perde o humor na desgraça. Numa das idas e vindas que a narrativa faz no tempo, ela assume o humor negro do seu lado Poliana: mostra o futuro do filho de quem Nasser Ali menos gostava, agora chefe de uma família obesa e idiotizada na Califórnia. E diz que, se tivesse sobrevivido para conhecer a família do filho, o músico certamente teria morrido de um câncer, de maneira muito mais lenta e penosa.
Passar para o outro lado do espelho é ser capaz de inverter o que era preto e o que era branco, não recusar as contradições nem as complexidades históricas ou sentimentais. No seu caminho para a morte, Nasser Ali se lembra da mãe doente em seus últimos dias de vida. O músico não era nem de longe o filho preferido da mãe. Mesmo assim, rezava sem parar, em segredo, para que ela não morresse. Um dia, a mãe o chama e diz: "Eu só quero morrer e as suas preces não me deixam partir para o outro mundo". Na espera da morte, Nasser Ali também desconfia que alguém esteja rezando por ele. Só não pode imaginar que seja o filho que ele mais detesta, o mesmo que se tornará chefe de uma família obesa e idiotizada na Califórnia.


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