São Paulo, quinta-feira, 09 de novembro de 2006

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análise

Reedição permite releitura de visão inovadora

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os livros possuem seu próprio destino -promete o conhecido provérbio. Mas talvez não seja impertinente acrescentar que poucos têm a fortuna dos melhores vinhos. Nesse caso, o leitor que consultar a reedição, revista, de "A Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos)" saberá que 1959, momento de sua primeira edição, foi o ano de uma excepcional safra. Vale recordar, portanto, alguns pontos principais de sua história literária.
Em primeiro lugar, destaca-se o reconhecimento da relação intrínseca com a literatura portuguesa, ou seja, com a cultura ocidental -afirmação derivada da dialética entre tendências universalistas e particularistas.
Por isso mesmo, sua escrita não é teleológica: o caráter "nacional" da literatura não é a "causa", porém o "resultado" de um processo histórico multissecular.
Trata-se de uma contribuição realmente original -e não apenas no cenário brasileiro. Aliás, pelo contrário, essa sutileza passou despercebida, sobretudo pelos teóricos que produziram comentários críticos sofisticados tendo lido apenas a "Introdução" do volume. Embora malandro, tal método tem o mérito de chamar atenção para uma das novidades mais importantes da história literária de Antonio Candido, ou seja, seu emprego particular do conceito de sistema. Esse conceito estimulou uma narrativa não teleológica da formação da literatura nacional.
De um lado, o conceito de sistema dificultou o tradicional uso ideológico da história literária. Em lugar da simples sucessão cronológica de um repertório bibliográfico, o conceito de sistema demanda o estudo de momentos assimétricos. Candido oferece uma reflexão que não se compromete com um "resultado" determinado, conhecido a posteriori, porém se dedica à reconstrução do "processo" histórico.
De outro lado, o conceito de sistema valoriza a relação dos elementos em jogo. No caso, o sistema literário supõe o exame da dinâmica criada entre os vértices do triângulo: autor, obra e público. Portanto, a história literária se transforma no estudo do processo cujo resultado final não pode ser determinado a priori, mas exige o paciente trabalho de reconstrução dos momentos decisivos da formação -e, vale lembrar, a "formação" poderia não ter ocorrido ou ter conhecido concretizações muito distintas.
Na ordem sistêmica, não há resultados "necessários", mas condições possíveis, circunstâncias favoráveis ou obstáculos definitivos. Daí destaca-se outra contribuição de Antonio Candido. Em seu livro, o crítico somente cita obras efetivamente lidas. Perguntemos em voz baixa: não é verdade que o exercício mais comum das histórias literárias seja a menção compulsória de nomes de autores e títulos de obra sem um estudo cuidadoso? A história literária tende a subordinar as obras a uma concepção abrangente, tornando "ociosa" a leitura cerrada dos textos.
O valor da "Formação" só pode ser avaliado se o leitor discutir as análises de momentos específicos e de autores determinados.

Exclusões
Nesse horizonte, e sob o signo da distinção conceitual entre "manifestações literárias" e "literatura propriamente dita", as exclusões presentes na "Formação" adquirem novo vigor. Candido explicita o caráter narrativo de toda história, pois dramatiza suas opções, assumindo o peso de suas exclusões.
Ademais, o propósito de investigar a constituição do sistema literário brasileiro justifica metodologicamente o limite imposto à narrativa por meio do arco temporal privilegiado (mas não exclusivo): arcadismo e romantismo. Na visão do autor, os dois momentos decisivos na articulação entre autor, obra e público. E, para retornarmos à dialética do universal e do particular, a importância do arcadismo também se revela no diálogo estabelecido com a tradição da cultura ocidental.
Sem dúvida, podemos discordar de sua opção; com toda certeza, metodologias distintas e mesmo contrárias são bem-vindas. A reedição da "Formação" representa uma nova oportunidade de (re)ler uma das histórias literárias mais inovadoras do século 20.


JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de, entre outros, "Literatura e Cordialidade" (Eduerj)

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