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CONTARDO CALLIGARIS
"O Ano em que Meus Pais..."
No filme de Hamburger, a torcida de 70 é um ato de fé numa comunidade que talvez surja um dia
NA SEXTA passada, estreou o
filme "O Ano em que Meus
Pais Saíram de Férias", de
Cao Hamburger.
A história é conhecida: em 1970,
os pais de Mauro, um menino de 12
anos, saem "de férias" para fugir da
repressão. Por um imprevisto, Mauro acaba ficando sozinho e é acolhido pela comunidade judaica do Bom
Retiro. Jogando seu futebol de botões, ele espera que os pais voltem,
como lhe foi prometido, na hora da
Copa.
Saí do cinema comovido, e não foi
pela lembrança (que não tenho) do
Brasil dos anos 70.
É que, no fundo, somos todos
Mauros: alguns poucos, sem que a
gente entenda direito como ou por
quê, fazem "a História", e, no meio
disso, nós vivemos amizades, saudades, aflições, exílios, pequenas e
grandes paixões. Do ponto de vista
da História com letra maiúscula, somos botões empurrados pela mão
de quem joga (ou acha que está jogando), mas é no tabuleiro ou na
mesa improvisada que as vidas concretas acontecem.
"A História", para nós, botões, é
um pano de fundo, uma atmosfera.
E Cao Hamburger é um mestre na
criação de atmosferas. Sua obra anterior é um seriado para a HBO, "Filhos do Carnaval", que mereceria
uma nova difusão. O seriado era dominado por uma uniformidade cromática (uma mistura fria de verdes e
azuis) que era a cor de um mundo
duro e impiedoso. Em "O Ano em
que Meus Pais Saíram de Férias", a
cor dominante é um marrom grisalho, que, por si só, expressa o clima
da ditadura em seu pior momento.
Há um precedente: "Um Dia Muito Especial", de Ettore Scola (1977).
Na obra de Scola, o fascismo italiano
tem uma cor parecida com aquela
que é inventada por Hamburger (e
pelo talento de Adriano Goldman, o
cinematografista de ambas suas últimas obras). Mas a cor da opressão
não é o único ponto em que o filme
de Hamburger encontra o de Scola:
nos dois filmes, os protagonistas são
botões atropelados pelos "grandes"
acontecimentos, seu drama humilde é um protesto, uma reivindicação
da vida concreta contra as forças covardes da História.
Mauro, como disse, é acolhido pela comunidade judaica do Bom Retiro. Essa relação, que se constrói aos
poucos, não é fruto de uma cumplicidade de idéias. Mal sabemos o que
pensa, em matéria de política, o velho que acaba fazendo as vezes dos
pais de Mauro, mas descobrimos,
com ele e com Mauro, que, nos piores momentos, é possível contar
com uma moral dos afetos, uma moral da vida concreta: uma solidariedade dos botões.
Mil vezes, ouvi dizer que a vitória
do Brasil em 1970 foi "boa" para a ditadura (e que, se o Brasil ganhasse
em 2006, Lula "capitalizaria"). A
Itália ganhou suas primeiras copas
durante o fascismo, em 1934 e 1938,
e não sei como essas vitórias foram
vividas, na época, pelos militantes
antifascistas. Seja como for, o filme
nos mostra o Brasil reunido e parado diante dos televisores e dos rádios; até nos redutos da oposição, a
hora do jogo é um momento de trégua. A impressão (verídica, ao que
tudo indica) é que, apesar de uma divisão sangrenta, graças ao futebol,
ainda existia uma nação.
Mas em que sentido? Será que se
tratava de uma torcida patriótica pela qual a seleção seria um símbolo
nacional abstrato, uma bandeira? E,
se fosse assim, no que essa torcida
seria diferente da paixão guerreira
de quem procura ou inventa adversários para poder gritar "my
country, right or wrong" (meu país,
de qualquer forma, tanto faz que ele
esteja certo ou errado)?
O patriotismo, como diz a famosa
frase de Samuel Johnson (com a
qual concordo, aliás), é "o último refúgio dos canalhas": é um recurso
para encontrar, na coletividade, força, identidade e "bom direito" sem
levantar perguntas que seriam incômodas se fossem colocadas aos indivíduos, um a um.
Não vou recorrer a argúcias para
provar, sei lá como, que a inspiração
das torcidas pode ser de um quilate
melhor que a do patriotismo canalha. Não é necessário, pois o filme de
Hamburger responde: nele, a torcida de todos, em 70, é o momento comovedor de uma aposta, um ato de
fé numa comunidade de destino,
que surge por um momento no Bom
Retiro onde Mauro se encontra e
que talvez surja, um dia, depois do
sangue e da raiva.
É como se a torcida nacional celebrasse não uma bandeira abstrata,
mas a comunidade real, concreta,
aquela que não existe, mas cujo sonho vive e continua, há alguns séculos, apesar de divisões e diferenças,
apesar de tudo.
ccalligari@uol.com.br
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