São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2000

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"BEATO JOSÉ LOURENÇO"

Um livro com cheiro e gosto de Brasil

JOSÉ ARBEX JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mas, afinal, quem é o povo brasileiro?
Se você acha que essa questão é irrelevante, não perca o seu tempo com a história do negro beato José Lourenço. Ela faz parte desse caleidoscópio imenso e contraditório que se pode, com propriedade, denominar cultura nacional e popular. O beato foi um brasileiro, homem do povo. Foi também protagonista de um dos maiores massacres da história deste país. Massacre, como de praxe, convenientemente esquecido pela história oficial.
Lourenço nasceu em Pilões de Dentro, Paraíba, em 1872. Mudou-se para Juazeiro (CE), 22 anos depois, para ir ter com a família, que deixara a terra natal. Tornou-se um dos milhares de "penitentes do Cariri", miseráveis que dependiam das orações e da ajuda econômica do padre Cícero, santo vivo da devoção dos nordestinos sem comida ou terra.
Em 1894, Zé Lourenço foi incumbido, pelo padre Cícero, de criar uma nova comunidade de devotos, no sítio Baixa Danta, na vizinhança do Crato. Para lá mudou-se com a família e romeiros. Para lá eram enviados cangaceiros arrependidos, assassinos, prostitutas e solteiras que haviam perdido a virgindade.
Com muito trabalho coletivo, o sítio começou a prosperar. Havia fartura de manga, laranja, limão, hortaliças, café. Mas o período de relativa calmaria acabou em 1914, na Sedição do Juazeiro, quando tropas do governador Franco Rabelo invadiram e saquearam o sítio, como consequência de um jogo de alianças políticas envolvendo interesses dos governos federal e estadual, dos empresários e latifundiários locais e, claro, da Igreja Católica e do padre Cícero.
Zé Lourenço, "que não havia dado um único tiro", perdeu tudo. Mas o pior estava por vir.
Em 1921, o empresário Delmiro Gouveia deu um boi, batizado Mansinho, de presente ao "padim Ciço". Conduzido à comunidade do beato Lourenço, o boi ganha fama de "milagreiro". "Adorado pelos fiéis, motivo de outras tantas promessas, até as fezes do boi eram utilizadas como remédio ou devoção", conta o autor, Xico Sá.
Foi o sinal para que a elite cearense, ainda assustada com Canudos (1896-97), passasse a intensificar os ataques contra a nova "comunidade de fanáticos". Zé Lourenço é obrigado a deixar o sítio Baixa Danta, depois de crueldades e humilhações (incluindo o sacrifício do boi). Instala nova comunidade em um sítio do "padim", no Caldeirão de Santa Cruz do Deserto.
Ali, em 1937, três anos após a morte do padre Cícero, acontecerá o massacre de pelo menos 700 seguidores do beato Lourenço. Ele mesmo escapa. Retornará depois ao local, para reiniciar o seu trabalho. Morreu em 46, em Exu, Pernambuco. Seu corpo foi enterrado no cemitério de Juazeiro, ao lado do túmulo do padre Cícero.
Como se vê, é uma história com cheiro e gosto de terra. É feita de santos e pecadores, de sangue e devoções. Nada mais distante do mundo "desterritorializado" configurado pelas redes eletrônicas globalizadas. Só que é uma história muito bem contada. Xico Sá, que é do Crato, adota o melhor estilo de narrativa jornalística para contar o que aprendeu dos avós e, depois, dos livros. Seu livro tem cheiro e gosto de Brasil.

Beato José Lourenço
    
Autor: Xico Sá
Editora: Fundação Demócrito Rocha (www.fdr.com.br)
Quanto: R$ 5 (72 págs.)



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