São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA

Tudo morre

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

R ilke escreveu que tudo estava contido nesse livro: "Quanto mais o leio, mais tenho a impressão de que tudo está aí dentro". Na sua simplicidade de nome próprio, também não poderia haver título mais completo: "Niels Lyhne". Afinal, o romance é a descrição da vida de um homem, do seu nascimento à sua morte, e de todos os sentimentos humanos representados nesse intervalo, pelo protagonista e pelos que o cercam.
"Niels Lyhne" (1880) é o segundo e último romance de um dos maiores escritores dinamarqueses do século 19, Jens Peter Jacobsen (1847-85). É também, como mostra o prefácio de Claudio Magris incluído nesta edição que inaugura a coleção Prosa do Mundo da Cosac & Naify, um dos marcos fundadores do romance moderno.
Jacobsen foi tradutor de Darwin. O protagonista de seu livro descobre ainda na infância a ausência de Deus, que em seguida tentará suprir pela razão. Mas ao contrário do que professa uma crença positivista na ciência, essa primeira desilusão não lhe dará nada em troca. A vida que Niels Lyhne representa é uma sucessão de desilusões e, uma vez cumprido o ciclo, uma série de pequenas fatalidades o conduz à morte.
Jacobsen rompe com toda ilusão metafísica (poética ou religiosa), mas não põe nada em seu lugar, a não ser a constatação resignada e melancólica do vazio do intervalo entre nascimento e morte que chamamos de vida. O materialismo não trás nenhum alívio, nenhuma compensação. Mas o mais curioso, como acontece nas obras mais extraordinárias, é que esse niilismo não provoca, pelo menos no leitor, nenhuma depressão. Ao contrário, é motivo do maior júbilo.
Niels é filho de um pai realista e prosaico e de uma mãe sonhadora e provinciana, que vive na imaginação e para quem a poesia é uma forma de escapismo e sublimação. É filho de um casamento desencantado e do confronto entre essas duas tendências. Quer ser poeta e sonha com as histórias que a mãe lhe conta, mas logo percebe o abismo entre as fantasias da infância e a realidade passageira da vida.
A oposição entre sonho e realidade forma o núcleo básico do romance e uma espécie de teoria estética implícita, da qual a personalidade do protagonista é a ilustração. Recusando a arte como fantasia, idealismo e sublimação, ele vai tentar fazer de si mesmo a sua obra: "Niels Lyhne espera sempre que a vida finalmente chegue, de modo que não seja mais preciso poetar sobre ela (...). O artista é aquele que vivencia essa precariedade do eu sem substância e sem limites, e que a vivencia em si mesmo (...), poetando a própria vida (isto é, testando várias possibilidades de lhe dar forma e fisionomia) mais do que a própria obra", escreve Magris no prefácio.
Niels Lyhne procura uma fusão entre arte e vida. Mas como a vida aqui representada é uma sucessão de decepções, sacrifícios inúteis e perdas de todos os tipos, esse desejo só pode ser mais uma ilusão.
A primeira morte da vida de Niels é também a sua primeira imagem do desejo: a tia Edele. E não é mera coincidência que o desejo tenha sido despertado justamente por quem vai logo morrer, a despeito das súplicas que o menino faz a um Deus surdo, perverso ou incompetente. Toda felicidade traz, em potencial, o que a corrompe. Tudo e todos morrem.
O antiidealismo radical de Jacobsen é, porém, peculiar e paradoxal. Niels Lyhne é a ilustração de tudo o que é humano, nele estão representados e refletidos todos os sentimentos do mundo. Sua vida é, no fundo, uma grande alegoria. Livre de ideais, só lhe resta tristeza, solidão e morte.
Jacobsen faz de Niels Lyhne o argumento para derrubar todas as ilusões (Deus, o amor, a poesia, a volta às origens, a razão e as teorias). Seria ingênuo, no entanto, pensar que tenha se esquecido do romance que o leitor tem nas mãos e que produz, curiosamente, o efeito inverso do que é ali descrito. A radicalidade de seu niilismo abre uma outra porta. É o próprio romance, ao fazer a representação radical e sem saídas da falta de sentido, que lhe permite invertê-la e transformá-la, como num passe de mágica, em sentido do prazer.



Niels Lyhne
Niels Lyhne

    
Autor: Jens Peter Jacobsen
Tradução: Pedro Octávio Carneiro da Cunha
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 35 (290 págs.)





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