São Paulo, sexta-feira, 09 de dezembro de 2005

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CRÍTICA

Cineasta faz cinema aberto à pulsão da vida

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Frustração é um sentimento recorrente quando se fala em cinema francês hoje. O que chega ao circuito brasileiro, com poucas exceções, ou são filmes-tese pretensiosos e ocos ou aqueles tipo exportação, com belas paisagens, bela fotografia, belo elenco e nada mais. Diante da situação, quando sobem os créditos finais de "Reis e Rainha", o espectador não se levanta imediatamente, fica ali, estarrecido.
Pois Desplechin retoma, com sutileza e maestria, uma forma de fazer cinema que seus antepassados da nouvelle vague um dia inventaram. Trata-se de um cinema não apenas apaixonado por ele mesmo e por outras artes, mas de um cinema aberto à própria vida. Em vez de alcançá-la por meio de uma ficção tortuosa ou de indagações intelectuais, Desplechin preferiu escutá-la, deixou que ela falasse num turbilhão de vozes e de sentidos, de significados claros e de muitos mistérios.
E não fez isso retomando procedimentos conhecidos. A modernidade experimentada pelos personagens da nouvelle vague hoje persiste apenas como mito cinematográfico. É de outra que se trata agora. E nesta, sabemos, impera, além da desconexão e da descontinuidade, um amor não mais que tênue pelas coisas e pelos outros. Ou seja, um novo conteúdo exige uma nova forma.
Para expressar essa complexidade, alguns cineastas já nos fizeram acostumar com a forma de filme-coral, testado aqui e ali com certa eficácia pelos norte-americanos. Pois Desplechin se arrisca numa ousadia maior. Encena com os atores muitas vezes no limite do "overacting" e depois monta a cena como uma miríade de pontos de vista e de camadas sobrepostas de temporalidade.
Assim, não só preserva uma intensidade justa da emoção como leva o espectador a experimentar a sensação de descontinuidade infinita, de pura fragmentação que se vive hoje.
Sua direção de atores remete a Cassavetes, outro mestre em captar "verdades" por meio do método de convencer os atores a abandonar a representação de um texto prévio e assumirem a tarefa de criá-lo em conjunto. Nesse sentido, "Reis e Rainha" ombreia o genial "Love Streams", de Cassavetes.
Mesmo sujeito a comparações, Desplechin faz um cinema que dispensa referências cinéfilas para ser admirado. Não se contenta só em entreter, arranca o espectador da letargia do lazer. Mas para isso não intelectualiza em excesso nem dificulta a expressão com charadas -há muitas no filme, mas não entendê-las não faz diferença. E o que alcança é praticamente um milagre. (CSC)

Reis e Rainha
Rois et Reine
    
Direção: Arnaud Desplechin
Produção: França, 2004
Com: Mathieu Amalric, Emmanuelle Devos e Catherine Deneuve
Quando: a partir de hoje nos cines HSBC Belas Artes e Reserva Cultural


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