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FERREIRA GULLAR
Pobre, eu ria à toa
Foi aquele um tempo estranho da minha vida, de que não sinto saudade nem mágoa
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UM EDITOR quer lançar uma
tradução do "Poema Sujo"
na Argentina. Falaram comigo por telefone, o que me fez lembrar daqueles tempos em Buenos
Aires, quando escrevi o poema, hoje
já traduzido em vários países, mas
não lá, onde ele nasceu.
Não é bem assim, foi traduzido.
Depois de trazê-lo para o Brasil, no
final de 1975, naquela tal fita que ele
me fez gravar, Vinicius de Moraes
entendeu de traduzi-lo para o espanhol, mas uma tradução a dez mãos,
em equipe, de que participaram ele,
sua namorada argentina, minha namorada argentina, eu e uma amiga
dele que era tradutora. Uma farra.
Como se não bastasse, a tradução
foi submetida a uma última revisão,
na casa de Augusto Boal, também
em grupo, de que participavam
Eduardo Galeano e Santiago Kovadloff, que traduzia, na época, uma
antologia de poemas meus para uma
editora em Caracas. Essa revisão final foi sugerida pela Editora De La
Flor, que aceitara editá-lo.
Ocorreu que, antes que isso acontecesse, o dono da editora teve que
fugir às pressas da Argentina, para
não ser preso pelos militares que
acabavam de depor a presidente Isabelita, viúva de Perón. Guardei comigo os originais da tradução, corrigido naquela noite e, quando recentemente o reli, quase agradeço aos
militares por terem impedido sua
publicação: era um boi com abóbora.
Para essa nova iniciativa de editá-lo, terá que ser traduzido de novo, e
não a dez mãos; por duas é melhor. O
que também tornaria desnecessário
prender o novo editor.
Brincadeira, claro. É que me lembrei de uma piada, que eu mesmo inventei a meu respeito, apropriada
àqueles tempos instáveis. Dizia às
pessoas: fui para Santiago do Chile,
poucos meses depois derrubaram
Allende; segui para Lima e, no dia
em que decidi mudar-me para Buenos Aires, ainda no avião me informaram da morte de Perón. Pouco
depois, um golpe militar depõe Isabelita. Agora -dizia eu-, quando falo em mudar de país, dizem: "Não
vem pra cá, pelo amor de Deus!".
Foi aquele um tempo estranho da
minha vida, de que não sinto saudade nem mágoa, embora tenha me
custado um alto preço em sofrimento e desamparo. E quando o evoco é
quase sempre pelo que teve de
engraçado, apesar de tudo. Sim, a
gente ri, apesar de tudo, e é isso o
que nos salva.
Um episódio que se contava então
ocorreu com Paulo Freire -autor,
como se sabe, de um famoso método
de alfabetização- quando estava
exilado em Montevidéu. Nordestino, saudoso das comidas e bebidas
de sua terra, um dia chegou radiante
e anunciou aos companheiros de
exílio que acabara de descobrir, ali
perto, um boteco onde se vendia suco de cajá. Saíram todos correndo
para lá e, ao chegarem, tiveram uma
decepção. Era de fato uma venda de
sucos, mas o que confundira o nosso
alfabetizador foi a palavra "caja",
que em espanhol significa "caixa", o
local onde se paga a compra feita.
Como essa, havia muitas outras
anedotas, envolvendo asilados e
quase sempre decorrentes de confusões lingüísticas. É que, como o português e o espanhol são línguas muito parecidas, eram muitos os equívocos em que nos metíamos. E, se às
vezes criavam embaraços, pelo menos nos divertiam. Entre muitas
dessas confusões vocabulares, houve uma que se espalhou pela comunidade dos exilados e que se passou
na Bolívia. Ao chegar ao hotel, com
malas e bolsas, um brasileiro se dirige ao funcionário de portaria, dizendo-lhe que lhe providenciasse um "sepélio". O homem arregalou os
olhos e, sem saber se ria ou não, perguntou:
-Un sepelio, señor?
-Sí, y lo más pronto que pueda.
A surpresa do funcionário se justificava, já que "sepelio", em espanhol,
quer dizer "velório". O nosso compatriota necessitava, de fato, de um
"cepillo", escova de dentes.
Essas confusões, que acometem
quem vive em terra alheia, nem
sempre são divertidas, como as que
passei, altas horas da noite, nas ruas
de Buenos Aires, quando fui parado
por patrulhas militares, posto de
mãos para cima contra a parede, sob
a mira de uma metralhadora, só por
ter cara de índio. Naquela época, era
perigoso parecer latino-americano
na América Latina.
Por isso, quando não havia motivos para rir, eu os inventava. Certo
fim de tarde, vinha eu do aeroporto,
num ônibus, quando vejo, à margem
da estrada, uma casa comercial com
o seguinte nome na fachada: "fábrica de pasta". Distraído, li: "fábrica de
bosta". Então, me imaginei indo até
a fábrica e dizendo ao dono: "O nome de sua fábrica está escrito errado. Em vez de fábrica de pasta puseram fábrica de bosta". Ao que o homem respondeu: "É fábrica de bosta, mesmo".
Ri todo o resto da viagem. Pobre ri
à toa.
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