São Paulo, terça-feira, 09 de dezembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Jovens e velhos


Apenas pela aceitação da morte seremos capazes de habitar a velhice sem drama

AS MINHAS desculpas, leitores: voltarei a tema antigo. Minha tentação era dizer que voltarei a tema "velho", mas desconfio de que o adjetivo despertaria acusações de gerontofobia ou, pior ainda, tanatofobia. Essa, pelo menos, é a interpretação de Jacob Pinheiro Goldberg, um doutor em psicologia que tem sérias dificuldades com a interpretação da língua portuguesa.
No passado dia 5 de dezembro, o doutor Goldberg inaugurou o seu artigo nesta Folha, "Vida e morte", evocando o meu nome e o meu artigo, "Morte e vida" (Ilustrada, 25/ 11), para tecer algumas considerações críticas sobre o mesmo. Não foi caso único: durante semanas, recebi centenas de mensagens sobre o dito artigo e algumas delas expressavam as mesmas perplexidades e confusões mentais que o doutor Goldberg repetia em sua prosa. Diz Jacob Pinheiro Goldberg que o meu texto é possível de resumir numa única frase: as pessoas podem viver com dignidade até aos 74, o resto é desperdício. Se isso fosse verdade, o doutor Goldberg estaria coberto de razão: eu não seria apenas um ignorante e um deslumbrado com minha própria juventude; seria um débil mental, a precisar dos cuidados clínicos do doutor Goldberg.
Acontece que não foi isso que eu disse: o meu texto era uma mistura de experiência pessoal e de reflexão metafísica, secundada por um estudo científico da revista "The Lancet". Era a revista, e não eu, quem afirmava que, em média, os habitantes da União Européia, a partir dos 50 anos de idade, têm uma esperança boa de vida que oscila entre os 9 e os 24 anos. O resto é desperdício. Em média.
Para além de não dominar a interpretação da língua portuguesa, o doutor Goldberg parece alheio ao significado básico de uma estatística: quando se afirma que, em média, os habitantes da União Européia têm uma vida digna até aos 74, isso não significa que não seja possível ter uma vida boa depois dos 74. Felizmente, estou rodeado por notáveis velhos com 80 ou 90 anos que, às vezes, têm uma agilidade mental e uma "joie vivre" que fazem de mim um dinossauro. O próprio doutor Goldberg, com os seus 75, é a prova de que a velhice não é um desperdício. Se fosse, eu não estaria a responder-lhe.
A partir desse dado estatístico, o que eu dizia era distinto. Impressionado pela fase final e dolorosa do defunto que tinha à minha frente, eu afirmava que a medicina deve aceitar os limites naturais do corpo e a nossa incontornável mortalidade. Não deve prolongar inutilmente a vida quando ela chega ao seu termo natural. E não deve, como atualmente acontece, procurar uma espécie de imortalidade secular, que por vezes se confunde com uma certa indignidade humana. Até porque a busca da imortalidade possível transporta a mais profunda contradição do tempo em que vivemos.
Eu concordo com o doutor Goldberg sobre a adoração orgásmica da juventude na cultura atual. Os jovens, e só os jovens, parecem ser dignos de endeusamento, ao mesmo tempo que se despreza a existência dos mais velhos. Porém, e a contradição reside aqui, ao mesmo tempo que adoramos a juventude e desprezamos os velhos, desejamos prolongar até aos limites do possível a nossa própria existência terrena. Graças aos prodígios da medicina, vivemos mais. Mas, paradoxalmente, se começamos a viver mais, começamos a viver demais.
Esse terrível paradoxo assenta numa única tragédia: a incapacidade do Ocidente para aceitar a morte. A forma efusiva como celebramos a juventude, a maneira amedrontada como desejamos viver eternamente e o desprezo por aqueles que nos lembram a inevitável velhice do corpo alimentam-se do mesmo problema: um medo da morte que não tem paralelo na história da humanidade. Não vou inquirir as razões profundas desse medo. Mas desconfio de que o recuo das teologias tradicionais e o exponencial aumento do conforto material das sociedades modernas sejam dois fatores decisivos para explicar a tanatofobia de que fala o doutor Goldberg.
Disse e repito: aprender a morrer é uma forma de aprender a viver. Não apenas porque a consciência do fim revaloriza a nossa passagem pela Terra. Mas porque a morte permite dar a cada etapa da vida o respeito que essa etapa merece. Nem mais, nem menos. Só pela aceitação da morte seremos capazes de celebrar a juventude sem histeria e habitar a velhice sem drama. Ou seja, sem a tentação de prolongar patologicamente ambas.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: SP provinciana é registrada por Farkas em livro sobre o Pacaembu
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.