São Paulo, terça-feira, 10 de janeiro de 2006

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ERUDITO/CRÍTICA

Anne-Sophie Mutter grava o novo velho Mozart

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Anne-Sophie Mutter deu seu primeiro concerto aos nove anos, tocando o "Concerto para Violino e Orquestra" de Mozart (1756-91). Estreou em disco aos 13, tocando os "Concertos" nš 3 e nš 5 de Mozart, com a Filarmônica de Berlim, regida por Herbert von Karajan. Chegando agora aos 30 anos de carreira, e aproveitando a ocasião -o festejado bicentenário de nascimento do compositor, em 2006-, ela grava a integral dos "Concertos", com a London Philharmonic Orchestra regida por ela mesma.
Esse é o primeiro de três projetos de Mutter no ano Mozart. Até o final de janeiro sai um CD com três "Trios" (K. 548, 542 e 502), que ela toca com o marido, André Previn (piano), e o "protegé" Daniel Müller-Schott (violoncelo). E em agosto vem a integral das "Sonatas para Violino e Piano", com Lambert Orkis, seu parceiro na integral das "Sonatas" de Beethoven (lançada em 2000).
O som de Anne-Sophie: poderoso, direto, expressivo -qual a palavra menos errada para generalizar o que é tão particular? Virou quase lugar-comum dizer que ela tem mais regularidade do que excepcionalidade. Mas fica difícil aceitar essa opinião, quando se ouve uma linha melódica como as que ela toca no movimento lento do "Concerto nš 5", ou em qualquer movimento da "Sinfonia Concertante para Violino, Viola e Orquestra", interpretada lado a lado com Yuri Bashmet, para fechar o disco.
Exemplo do que ela faz numa linha lenta: a frase cresce na direção da última nota, que ganha um "vibrato" especial. Até aí, nada de tão diferente. O que distingue a violinista alemã é o fato de que, a caminho dessa última nota, eventuais notas longas recebem, cada uma, um "vibrato" diferente, ou mesmo, em alguns casos, "vibrato" nenhum, o que vira também um tipo de efeito expressivo.
Já o que ela faz nas rápidas é toda uma enciclopédia de arcadas, ataques e dinâmicas, onde o que é pequeno e delicado chega a extremos de delicadeza e minúcia, assim como o que é grande e expansivo pode ficar enorme e dramático. Se variações dessa ordem nem sempre são reconhecidas, deve ser por conta da sensação constante de propulsão, ou confiança -essa sim, transcendentalmente regular.
Vale ressaltar que estamos muito longe, aqui, de qualquer tentativa de interpretação "autêntica" da música de Mozart. Tanto a orquestra (comparada pela violinista-regente, na entrevista "pop" do encarte, a um "automóvel Porsche -vibrante e cheio de juventude"), quanto a própria Mutter fazem um Mozart que se aproxima muito mais do repertório gravado da primeira metade do século 20 do que do registro musicologicamente imaginado de fins do século 18.
O efeito tem algo de curioso, porque, nessa era de superauto-consciência estilística, tocar como um Heifetz ou Oistrakh começa a soar, também, como um tipo específico de autenticidade. Assim como existe um Bach moderno dos pianistas (a essa altura, vários Bach), existe também um Mozart "antigo" do século 20; e é esse Mozart que Mutter reinventa, a seu modo, com um sentimento de adequação que, no caso dela, já dá para dizer que é obra de uma vida, tanto quanto a vida de uma obra.


Mozart: Concertos para Violino
    
Artista: Anne-Sophie Mutter
Gravadora: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 60


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