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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Uma proposta irrecusável
Vlad, o Empalador, foi um simpático tirano que, no século 15, tinha por hábito empalar os seus inimigos
PEÇO DESCULPA a meus leitores
regulares. Essa coluna não é
para vocês. Hoje, quero gente
com dinheiro. Quero saber quem
tem dinheiro para gastar. Falo de
US$ 60 milhões. Mas a proposta,
acreditem, é irrecusável.
Imaginem: um castelo medieval
na Europa, com dezenas de quartos
e decorado com mobiliário e arte seculares. Atualmente, funciona como
museu. Mas, calma, pode ser transformado em residência pessoal e,
após alguns acertos, servirá para férias, festas e outras orgias privadas.
Só tem dois problemas. Não são
bem problemas, antes questões de
perspectiva. O primeiro é que fica na
Romênia. E o segundo é que foi habitado pelo conde Drácula.
É verdade: leio nos jornais que o
castelo de Vlad, o Empalador, está à
venda. Vlad foi um simpático tirano
que, no século 15, tinha por hábito
empalar os inimigos em estacas de
pau. Muitos acreditam que a crueldade de Vlad serviu de inspiração
para Drácula. O castelo foi passando
de geração em geração e só em 1956
o regime comunista resolveu nacionalizar o edifício, transformando o
espaço em atração turística evidente. Ironia: de Vlad, o Empalador, ao
ditador Nicolau Ceausescu, é difícil
saber quem matou mais.
Claro que existe ainda um terceiro
problema, que eu esqueci de avisar:
talvez o Drácula do livro não tenha
sido inspirado no sanguinário Vlad,
um pormenor que o atual vendedor
não está interessado em divulgar.
"Drácula" foi criação de Bram Stoker, corria 1897, e muita tinta já correu sobre ambos. Paul Murray, no livro definitivo sobre ambos ("From
the Shadow of Dracula: A Life of
Bram Stoker"), mergulha os caninos
nessa literária jugular.
Conta Murray que o criador nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1847.
Difícil imaginar vida mais desinteressante. Sim, houve casamento
com uma beldade da época (Florence Balcombe, por quem Oscar Wilde, antes da conversão, se apaixonou
perdidamente). E houve, depois de
trabalho burocrático como funcionário público, uma passagem como
administrador teatral, em Londres.
Mas foi com "Drácula" que Stoker
conheceu alguma fama, embora as
origens do monstro sejam nebulosas. Especialistas garantem que a
inspiração foi literária, com o "Fausto" de Goethe à cabeça. Outros
apontam para inspiração mais real,
com Jack, o Estripador, degolando
outras cabeças. O próprio Stoker
não ajudou ao debate, confessando
que a inspiração foi gastronômica e
noturna: depois de um jantar faustoso, o pesadelo inevitável.
Com jantares ou sem eles, é duvidoso que Vlad faça parte da história:
uma história de horror que expressa, sobretudo, um dos problemas
centrais da literatura "gótica" vitoriana. Será a degenerescência física
uma forma de feiúra ética? Num
tempo dominado pela "ciência" e
pelo "progresso", essa idéia perigosa
de que o corpo revela o caráter foi
ganhando espaço mental. O século
20, com suas purgas eugenistas, limitou-se a seguir o que Drácula (ou
Frankenstein, ou Jekyll e Hyde)
simplesmente prenunciara.
E o castelo? É vosso por 60 milhões. Verdades ou mentiras à parte,
sempre são 450 mil turistas anuais.
E a certeza de que haverá pela casa
um caixão confortável para tirar
uma sesta antes do sol se apagar.
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