São Paulo, quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Uma proposta irrecusável

Vlad, o Empalador, foi um simpático tirano que, no século 15, tinha por hábito empalar os seus inimigos

PEÇO DESCULPA a meus leitores regulares. Essa coluna não é para vocês. Hoje, quero gente com dinheiro. Quero saber quem tem dinheiro para gastar. Falo de US$ 60 milhões. Mas a proposta, acreditem, é irrecusável.
Imaginem: um castelo medieval na Europa, com dezenas de quartos e decorado com mobiliário e arte seculares. Atualmente, funciona como museu. Mas, calma, pode ser transformado em residência pessoal e, após alguns acertos, servirá para férias, festas e outras orgias privadas.
Só tem dois problemas. Não são bem problemas, antes questões de perspectiva. O primeiro é que fica na Romênia. E o segundo é que foi habitado pelo conde Drácula.
É verdade: leio nos jornais que o castelo de Vlad, o Empalador, está à venda. Vlad foi um simpático tirano que, no século 15, tinha por hábito empalar os inimigos em estacas de pau. Muitos acreditam que a crueldade de Vlad serviu de inspiração para Drácula. O castelo foi passando de geração em geração e só em 1956 o regime comunista resolveu nacionalizar o edifício, transformando o espaço em atração turística evidente. Ironia: de Vlad, o Empalador, ao ditador Nicolau Ceausescu, é difícil saber quem matou mais.
Claro que existe ainda um terceiro problema, que eu esqueci de avisar: talvez o Drácula do livro não tenha sido inspirado no sanguinário Vlad, um pormenor que o atual vendedor não está interessado em divulgar. "Drácula" foi criação de Bram Stoker, corria 1897, e muita tinta já correu sobre ambos. Paul Murray, no livro definitivo sobre ambos ("From the Shadow of Dracula: A Life of Bram Stoker"), mergulha os caninos nessa literária jugular.
Conta Murray que o criador nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1847. Difícil imaginar vida mais desinteressante. Sim, houve casamento com uma beldade da época (Florence Balcombe, por quem Oscar Wilde, antes da conversão, se apaixonou perdidamente). E houve, depois de trabalho burocrático como funcionário público, uma passagem como administrador teatral, em Londres.
Mas foi com "Drácula" que Stoker conheceu alguma fama, embora as origens do monstro sejam nebulosas. Especialistas garantem que a inspiração foi literária, com o "Fausto" de Goethe à cabeça. Outros apontam para inspiração mais real, com Jack, o Estripador, degolando outras cabeças. O próprio Stoker não ajudou ao debate, confessando que a inspiração foi gastronômica e noturna: depois de um jantar faustoso, o pesadelo inevitável.
Com jantares ou sem eles, é duvidoso que Vlad faça parte da história: uma história de horror que expressa, sobretudo, um dos problemas centrais da literatura "gótica" vitoriana. Será a degenerescência física uma forma de feiúra ética? Num tempo dominado pela "ciência" e pelo "progresso", essa idéia perigosa de que o corpo revela o caráter foi ganhando espaço mental. O século 20, com suas purgas eugenistas, limitou-se a seguir o que Drácula (ou Frankenstein, ou Jekyll e Hyde) simplesmente prenunciara.
E o castelo? É vosso por 60 milhões. Verdades ou mentiras à parte, sempre são 450 mil turistas anuais. E a certeza de que haverá pela casa um caixão confortável para tirar uma sesta antes do sol se apagar.


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