São Paulo, quinta-feira, 10 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Após demitir equipe de restauro, Edemar Cid Ferreira perde a guarda de acervo com 765 peças arqueológicas

Beleza confiscada

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

O banqueiro Edemar Cid Ferreira vai perder a coleção de 765 peças arqueológicas que mantém no Instituto Cultural Banco Santos. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) decidiu cassar a licença que concedeu ao instituto em 4 de dezembro de 2002, nos últimos dias do governo de Fernando Henrique Cardoso. É o único acervo do gênero no país sob a guarda de instituição privada.
O banqueiro precisou da licença especial para legalizar a coleção. A legislação brasileira determina que só o Estado tem o direito à posse de "bens de natureza arqueológica ou pré-histórica", de acordo com a lei 3.924, de 1962.
O Iphan concedeu a licença sob o compromisso de que Edemar manteria uma arqueóloga como curadora do acervo e restauradores para recuperar as peças. Em 29 de novembro do ano passado, 17 dias após o Banco Central decretar a intervenção no Banco Santos, o instituto demitiu os 13 funcionários que contratara, a arqueóloga responsável pela coleção e seis restauradores. Com as baixas, o Iphan entende que cessaram as condições que sustentavam a licença especial.
Ninguém sabe avaliar o preço da coleção do banqueiro. Como a venda das peças é proibida, o mercado de bens arqueológicos opera na clandestinidade. Há pistas no mercado internacional. Edemar pagou US$ 200 mil (R$ 520 mil) por duas das três urnas funerárias marajoara que comprou em 2002 na galeria Mermoz, em Paris. Essas três peças decoram a casa do banqueiro; o resto da coleção está na reserva técnica que o instituto mantém no Jaraguá, na zona oeste de São Paulo.

Como um furacão
A investida de Edemar na área arqueológica teve o efeito de um furacão. "A arqueologia brasileira pode ser dividida em antes do Edemar e depois do Edemar", diz o arqueólogo Eduardo Neves, professor do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da USP e curador de três exposições arquitetadas pelo banqueiro, entre as quais a do Museu Britânico. A avaliação de Neves baseia-se em dois fatos -nunca o passado pré-descobrimento havia sido "tão bem exposto" e nunca a arqueologia se tornara um evento de massa, como aconteceu com a mostra "Brasil + 500", de 2000.
A legalização da coleção permitiu também, de acordo com Neves, a criação de um corpo de especialistas em cerâmica marajoara no país. Nem o museu Goeldi, de Belém, nem o Museu Nacional, no Rio, têm uma equipe de seis restauradores, como o instituto do banqueiro mantinha.
O instituto se dava ao luxo de trazer uma especialista do Museu Britânico, Janet Quinton, para ministrar um curso de restauro de cerâmica. Numa viagem dos britânicos pela Amazônia, o banqueiro colocou um jatinho à disposição da equipe por cinco dias.

Vendas clandestinas
A face negativa do interesse de Edemar por arqueologia foi o estímulo ao comércio clandestino, segundo a arqueóloga Denise Schaan, pesquisadora do museu Goeldi e considerada a maior especialista em arte marajoara.
Denise fala de sua própria experiência. Dois fazendeiros da Ilha de Marajó procuraram o museu Goeldi para vender suas coleções. Os pesquisadores explicaram que o museu não compra peças arqueológicas para não estimular o comércio clandestino e a destruição dos sítios. Dois anos depois, as peças apareceram na coleção do Banco Santos, segundo ela.
Aconteceu a mesma coisa com uma ponta de flecha encontrada no garimpo Castelo dos Sonhos, no sul do Pará, de acordo com Eduardo Neves. A peça foi oferecida ao museu Goeldi e à USP e, após a recusa, foi parar na coleção de Edemar. Para se ter uma idéia da raridade da peça, não existem mais do que 15 pontas de flecha de pedra escavadas na região amazônica, segundo Eduardo Neves.
"O Edemar deu um tratamento fantástico para a coleção que comprou dos fazendeiros. É um trabalho único no país em restauro. Nem o Goeldi faz isso", elogia Denise. A contraface, diz ela, é que o comércio estimula o saque e a instituição que o banqueiro criou não estava preocupada com pesquisa -assemelha-se mais a um gabinete de curiosidades.
Quando a coleção foi legalizada, em 2002, Edemar informou ao Iphan que as peças foram encontradas fortuitamente. Ao serem informados pela Folha dos relatos dos arqueólogos sobre a eventual compra das peças, os advogados do banqueiro disseram que, assim que o instituto teve acesso à coleção, procurou o Iphan para oficializar as peças.
Há outras particularidades na coleção. As peças de cerâmica marajoara, que representam 80% da coleção, formam um acervo único no país, segundo Denise Schaan: "A coleção tem uma importância fantástica porque foi formada por peças de uma só região da Ilha de Marajó".
O acervo é tão particular que o instituto tem também peças que não são encontradas nem no Goeldi nem no Museu Nacional -como uma estatueta antropomórfica que lembra uma onça. Em quatro anos, o banqueiro conseguiu reunir cerâmicas que o Museu Nacional, fundado em 1818, não tem no acervo.


Texto Anterior: Seriado: AXN investiga crimes da Marinha dos EUA
Próximo Texto: Museu da USP deve receber acervo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.