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Após demitir equipe de restauro, Edemar Cid Ferreira perde a guarda de acervo com 765 peças arqueológicas
Beleza confiscada
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
O banqueiro Edemar Cid Ferreira vai perder a coleção de 765
peças arqueológicas que mantém
no Instituto Cultural Banco Santos. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) decidiu cassar a licença
que concedeu ao instituto em 4 de
dezembro de 2002, nos últimos
dias do governo de Fernando
Henrique Cardoso. É o único
acervo do gênero no país sob a
guarda de instituição privada.
O banqueiro precisou da licença
especial para legalizar a coleção. A
legislação brasileira determina
que só o Estado tem o direito à
posse de "bens de natureza arqueológica ou pré-histórica", de
acordo com a lei 3.924, de 1962.
O Iphan concedeu a licença sob
o compromisso de que Edemar
manteria uma arqueóloga como
curadora do acervo e restauradores para recuperar as peças. Em 29
de novembro do ano passado, 17
dias após o Banco Central decretar a intervenção no Banco Santos, o instituto demitiu os 13 funcionários que contratara, a arqueóloga responsável pela coleção e seis restauradores. Com as
baixas, o Iphan entende que cessaram as condições que sustentavam a licença especial.
Ninguém sabe avaliar o preço
da coleção do banqueiro. Como a
venda das peças é proibida, o
mercado de bens arqueológicos
opera na clandestinidade. Há pistas no mercado internacional.
Edemar pagou US$ 200 mil (R$
520 mil) por duas das três urnas
funerárias marajoara que comprou em 2002 na galeria Mermoz,
em Paris. Essas três peças decoram a casa do banqueiro; o resto
da coleção está na reserva técnica
que o instituto mantém no Jaraguá, na zona oeste de São Paulo.
Como um furacão
A investida de Edemar na área
arqueológica teve o efeito de um
furacão. "A arqueologia brasileira
pode ser dividida em antes do
Edemar e depois do Edemar", diz
o arqueólogo Eduardo Neves,
professor do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da USP e
curador de três exposições arquitetadas pelo banqueiro, entre as
quais a do Museu Britânico. A
avaliação de Neves baseia-se em
dois fatos -nunca o passado pré-descobrimento havia sido "tão
bem exposto" e nunca a arqueologia se tornara um evento de
massa, como aconteceu com a
mostra "Brasil + 500", de 2000.
A legalização da coleção permitiu também, de acordo com Neves, a criação de um corpo de especialistas em cerâmica marajoara no país. Nem o museu Goeldi,
de Belém, nem o Museu Nacional,
no Rio, têm uma equipe de seis
restauradores, como o instituto
do banqueiro mantinha.
O instituto se dava ao luxo de
trazer uma especialista do Museu
Britânico, Janet Quinton, para
ministrar um curso de restauro de
cerâmica. Numa viagem dos britânicos pela Amazônia, o banqueiro colocou um jatinho à disposição da equipe por cinco dias.
Vendas clandestinas
A face negativa do interesse de
Edemar por arqueologia foi o estímulo ao comércio clandestino,
segundo a arqueóloga Denise
Schaan, pesquisadora do museu
Goeldi e considerada a maior especialista em arte marajoara.
Denise fala de sua própria experiência. Dois fazendeiros da Ilha
de Marajó procuraram o museu
Goeldi para vender suas coleções.
Os pesquisadores explicaram que
o museu não compra peças arqueológicas para não estimular o
comércio clandestino e a destruição dos sítios. Dois anos depois,
as peças apareceram na coleção
do Banco Santos, segundo ela.
Aconteceu a mesma coisa com
uma ponta de flecha encontrada
no garimpo Castelo dos Sonhos,
no sul do Pará, de acordo com
Eduardo Neves. A peça foi oferecida ao museu Goeldi e à USP e,
após a recusa, foi parar na coleção
de Edemar. Para se ter uma idéia
da raridade da peça, não existem
mais do que 15 pontas de flecha de
pedra escavadas na região amazônica, segundo Eduardo Neves.
"O Edemar deu um tratamento
fantástico para a coleção que
comprou dos fazendeiros. É um
trabalho único no país em restauro. Nem o Goeldi faz isso", elogia
Denise. A contraface, diz ela, é
que o comércio estimula o saque e
a instituição que o banqueiro
criou não estava preocupada com
pesquisa -assemelha-se mais a
um gabinete de curiosidades.
Quando a coleção foi legalizada,
em 2002, Edemar informou ao
Iphan que as peças foram encontradas fortuitamente. Ao serem
informados pela Folha dos relatos
dos arqueólogos sobre a eventual
compra das peças, os advogados
do banqueiro disseram que, assim que o instituto teve acesso à
coleção, procurou o Iphan para
oficializar as peças.
Há outras particularidades na
coleção. As peças de cerâmica
marajoara, que representam 80%
da coleção, formam um acervo
único no país, segundo Denise
Schaan: "A coleção tem uma importância fantástica porque foi
formada por peças de uma só região da Ilha de Marajó".
O acervo é tão particular que o
instituto tem também peças que
não são encontradas nem no
Goeldi nem no Museu Nacional
-como uma estatueta antropomórfica que lembra uma onça.
Em quatro anos, o banqueiro
conseguiu reunir cerâmicas que o
Museu Nacional, fundado em
1818, não tem no acervo.
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