São Paulo, quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

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MARCELO COELHO

A Amazônia vista de perto


Algumas das fotos de Gautherot parecem tão luxuriantes quanto a vegetação amazônica


PAISAGEM "VASTA , instável e anfíbia", no dizer de Milton Hatoum e de Samuel Titan Jr., a floresta amazônica não ajuda quem pretende retratá-la de modo convencional.
É o que leio na excelente introdução a "Norte", livro que acompanha a exposição das fotos de Marcel Gautherot em cartaz no Instituto Moreira Salles de São Paulo, até 21 de março.
Gautherot (1910-1996) radicou-se no Brasil em 1940; fotografou a construção de Brasília e os profetas de Congonhas do Campo. Seu gosto pela arquitetura, pela paisagem construída e pelas pessoas que vivem nela destaca-se até mesmo nas imagens que tirou no Amazonas e no Pará.
Casas flutuantes, canoas carregadas de alimentos, águas coalhadas de toras de madeira, velas e cordames de barcos que se entrecruzam talvez estejam entre os maiores atrativos dessa exposição.
Equilibrados entre a cidade, o rio e a selva, encontram-se bairros de palafitas altíssimas, com telhado de palha, coisa mestiça entre a favela e o aldeamento indígena.
Serra-se madeira, lava-se roupa, planta-se cana; algumas dessas fotos da década de 40 parecem tão repletas, luxuriantes e apinhadas quanto a vegetação amazônica.
O difícil de fotografar a floresta, notam Milton Hatoum e Samuel Titan Jr., é que as árvores e as plantas estão próximas demais. Exceto da janela de um avião (e são bem chatas aquelas fotos tiradas de cima), não há nenhum ângulo "panorâmico", de onde se possa oferecer uma visão geral da paisagem.
Inaugurando, sem dúvida, uma abordagem até hoje em voga, Gautherot faz maravilhas retratando os iguapés: em algumas fotografias, o espelho negro da água é tão liso e plácido que se torna impossível distinguir entre a árvore e o seu reflexo.
Formas fantásticas, como aranhas ou estrelas, desabrocham entre os limites quadrados da moldura. Como tudo é em branco e preto, perde-se de vez a noção de perspectiva. Mas atenção: escondido entre os galhos, muitas vezes, curioso e minúsculo, o rosto de um barqueiro ajuda-nos a compreender as proporções de cada acontecimento vegetal.
Depois das fotos de Gautherot, com sua nitidez de vidro, torna-se ainda maior o prazer de folhear um outro livro de imagens da Amazônia, lançado recentemente pela Imprensa Oficial.
"José Cláudio da Silva: 100 telas, 60 dias e um Diário de Viagem -Amazônia, 1975" reproduz os quadros e as anotações do pintor pernambucano, nascido em 1932. A convite do biólogo e compositor Paulo Vanzolini, passou dois meses a bordo de um barco-laboratório, e foi pintando o que via.
O resultado, a julgar pelas reproduções desse livro volumoso e largo como um rio, é deslumbrante. José Cláudio da Silva estudou com Carybé e Lívio Abramo, mas suas paisagens lembram sobretudo as de José Pancetti.
Um Pancetti que largou o ar salgado das praias e reencontrou, na água doce da Amazônia, perspectivas tão largas e vazios tão puros quanto os das célebres marinhas e paisagens do Abaeté.
Raramente os quadros de José Cláudio da Silva se saturam daquele verde que seria de esperar numa viagem pela Amazônia. A tela, às vezes, se inunda de areia e de cinza, com um pouco de pálido amarelo a indicar o rio; alguns quadros parecem quase abstratos.
Ou então se jogam no mais concreto possível: insetos, sapos, um jacaré retorcido como se fosse cobra, ocupam toda a extensão do olhar -reiterando a impressão de Euclides da Cunha, citada por Milton Hatoum e Samuel Titan Jr, de que, na Amazônia, a vista oscila entre dissolver-se na amplitude ou apequenar-se no detalhe microscópico.
Interessadíssimo na culinária local, José Cláudio da Silva pinta igualmente pratadas de peixe e fachadas de restaurante -diante das quais podemos ver, como bem se sabe, prostitutas se oferecendo aos esparsos fregueses que aportam nos lugarejos ribeirinhos.
Para não esquecer, José Cláudio anota o nome de uma marca de cerveja local, que lhe diziam ser tão boa quanto as cervejas consumidas no Sudeste: é a Cerpa, ilustre desconhecida em 1975.
Os quadros do pintor já registram, em todo caso, uma Amazônia menos exótica, menos estereotipada, do que a de nossas vagas imaginações paulistanas. Aliás, com tantas enchentes por aqui, talvez o leitor urbano acabe por tomar aqueles iguapés, barcaças e barrancos como velhos conhecidos seus.

coelhofsp@uol.com.br


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