|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O arquiteto da destruição
Americano que repudiou o urbanismo com fendas nas paredes, Matta-Clark tem retrospectiva em SP
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
Um rasgo na lateral de um
prédio traz a brisa para dentro e
revela a demolição do lado de
fora. Dava para ver o esqueleto
do Pompidou, em Paris, enquanto retroescavadeiras arrasavam o bairro de Les Halles.
Três anos antes de morrer,
em 1978, Gordon Matta-Clark
retalhou o vizinho do museu
que trouxe discórdia ao centro
parisiense. Fazia de seus cortes
um interrogatório de estruturas urbanas. Aguçava o olhar
para o fracasso da arquitetura.
"Ninguém sabia o que ele estava fazendo, só mais tarde viram que havia uma lógica na
obra dele", lembra à Folha Jane Crawford, viúva do artista
tema da retrospectiva que o
Museu de Arte Moderna de São
Paulo abre amanhã. "Seus amigos todos se contradizem."
Ela conheceu Matta-Clark
no vernissage de uma exposição em Nova York. Moravam
num SoHo pré-especulação
imobiliária e boutique da Apple, um lugar com dois bares e
artistas conceituais famintos,
tipo Richard Serra. Viveu três
anos com Matta-Clark, arquiteto de formação, filho do surrealista chileno Roberto Matta
e afilhado de Marcel Duchamp.
"Pediram para fazer um projeto na galeria onde eu trabalhava", conta Crawford. "Ele
quis construir um túnel subterrâneo que ligasse a galeria
ao prédio do outro lado da rua,
que era o banco Chase Manhattan. Não deu certo, mas a gente
se deu muito bem."
Matta-Clark, aliás, não conseguiu realizar boa parte de
seus projetos. Terminavam
sempre num acordo com autoridades, curadores, burocratas.
Mas conseguiu rachar uma casa ao meio, perfurar um prédio
de escritórios em Antuérpia e
mergulhar nos subterrâneos de
Paris e Nova York.
Urbanismo e Freud
"Sua relação com a arquitetura era quase freudiana", resume Gabriela Rangel, curadora
da mostra. "Era o fim da Guerra
do Vietnã, ele promoveu uma
mudança de paradigma: a cidade como paisagem política."
Enquanto o fim do conflito
lastreava o foco no corpo de
seus contemporâneos, a bala
no braço de Chris Burden, a
masturbação de Vito Acconci,
Matta-Clark violava as construções. Queria denunciar utopias que fracassaram antes
mesmo de existir e os absurdos
da especulação imobiliária.
Em "Fake Estates", comprou
lotes de terra diminutos -e
inúteis- em Nova York. Eram
espaços vazios espremidos entre terrenos já vendidos. Manteve as escrituras dos lotes até
morrer. Sua viúva, sem dinheiro para pagar impostos sobre
esses terrenos-manifesto, doou
tudo ao traficante do bairro.
No MAM, esses lotes aparecem agora em fotografias ao lado das escrituras, documentos
que atestam o poder de uma
ação que ficou só na memória.
Quase todos os cortes de Matta-Clark também foram demolidos, sobrando só vídeos e fotografias para contar a história.
"Esses documentos têm a
força de um mito", diz Rangel.
"Não é preciso ver a ação, só saber que foi algo contundente."
Têm mesmo poder inegável
as fotografias de casas rachadas, frestas abertas à força em
blocos de concreto. Mas quem
andou por ali sentiu algo mais.
"Quando atravessava aquele
vão, de um lado para o outro da
casa cortada, sabia que havia algo muito errado", lembra
Crawford. "Aquele desconforto
alertava mais para o perigo, fazia acelerar meu coração."
Texto Anterior: Marcelo Coelho: A Amazônia vista de perto Próximo Texto: Frases Índice
|