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Crítica/DVD/"Festival Teat(r)o Oficina"
Registros em vídeo do Oficina são legado à história do teatro
Embora qualidade da imagem seja às vezes sofrível, vídeos captam bem encantos das peças
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
Registros de espetáculos
sofrem sempre a limitação de congelar o que
é, por natureza, efêmero. O teatro Oficina enfrentou o desafio
de filmar quatro dos espetáculos que produziu na década de
1990, com a melhor tecnologia
disponível e farto apoio financeiro. O resultado consolida a
memória digital de sua última
fase e torna acessível ao grande
público uma antologia exemplar de sua teatralidade.
Os quatro espetáculos gravados são remontagens que demarcam momentos distintos
do Oficina, desde que ressurgiu
das cinzas no espaço desenhado por Lina Bo Bardi -o teatro
rua- e se tornou uma versão
diminuta dos sambódromos
brasileiros, substituindo o palco pela pista.
Em "Ham-let", a chave do espetáculo é dada pelo coro quando canta "solta o canastrão". Ali
estão sintetizados o significado
em inglês que a separação por
um hífen, no título da peça, explicita, a leitura da obra de Shakespeare como discussão sobre
encarnar papéis e as assumidas
limitações do ator principal,
Marcelo Drummond, mais evidenciadas, agora, no DVD.
A tradução e adaptação do
original são exemplares dos
procedimentos habituais a todas as encenações da companhia: o encenador é absolutamente fiel ao texto, mas se permite atualizá-lo, apropriando-se dos conteúdos de modo a interpolar entre eles sua própria
dramaturgia plena de referências à realidade brasileira e às
questões atinentes ao Oficina.
Essa marca, que transforma
textos já longos em espetáculos
intermináveis, costuma dificultar a recepção do público. No
caso do DVD de "Ham-let", a
dificuldade se agrava, porque,
em alguns momentos, padrões
de claridade e sonoridade mínimos para o registro audiovisual
não são alcançados.
Em "Cacilda!", texto que José
Celso Martinez Corrêa escreveu em 1991, estão já definidas
muitas das características intertextuais de futuras encenações. Combinando as diversas
dramaturgias que Cacilda
Becker experimentou, em sua
vitoriosa carreira dos anos 40
aos 60, Zé Celso serve-se da situação dramática do coma de
40 dias da atriz, depois de um
derrame em 1969, para cruzar
personagens e fatos biográficos
num tipo de delírio encenado.
O DVD capta com rara felicidade os encantos do espetáculo, e pode ser assistido com os
comentários do diretor, em paralelo, decifrando sentidos de
cada uma das cenas.
Pedagogia do êxtase
"Bacantes" é o mais musical
dos espetáculos gravados e o
que, frente à dezena de encenações do Oficina nos últimos
anos, melhor representa a disposição do grupo de tornar seu
teatro um permanente culto à
orgia e ao desregramento.
Melhor do que qualquer outro, também, expressa o paradoxo de esses ritos eróticos serem movidos por uma retórica
racional, numa espécie de pedagogia do êxtase. A favor dela,
o original de Eurípedes fornece
farta argumentação. De outro
lado, a bela trilha de Marcelo
Pellegrini garante uma fruição
mais anímica. O DVD capta
bem essa tensão, assim como
oferece, nos extras, exemplos
de como Zé Celso construiu sua
encenação no piano, a partir
das canções.
Em "Boca de Ouro", o espetáculo menos longo, o texto de
Nelson Rodrigues, incluindo
suas rubricas, é seguido à risca,
o que cria uma trama mais linear e colabora com a versão
filmada. A pista do teatro tingida de vermelho funciona bem
para a linda fotografia de Dib
Lufti, e se alcança o melhor resultado de luz e imagem. Destaquem-se, nos extras, além do
documentário histórico que está em todos os DVDs, depoimentos sobre o autor carioca e
o grupo.
Fixados em DVD, os espetáculos oferecem-se à posteridade como intrigante legado do
teatro brasileiro à história das
artes cênicas.
Avaliação: regular ("Ham-let");
bom ("Bacantes"); ótimo ("Cacilda!" e "Boca de Ouro")
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