São Paulo, terça-feira, 10 de março de 2009

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Crítica/DVD/"Festival Teat(r)o Oficina"

Registros em vídeo do Oficina são legado à história do teatro

Embora qualidade da imagem seja às vezes sofrível, vídeos captam bem encantos das peças

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Registros de espetáculos sofrem sempre a limitação de congelar o que é, por natureza, efêmero. O teatro Oficina enfrentou o desafio de filmar quatro dos espetáculos que produziu na década de 1990, com a melhor tecnologia disponível e farto apoio financeiro. O resultado consolida a memória digital de sua última fase e torna acessível ao grande público uma antologia exemplar de sua teatralidade.
Os quatro espetáculos gravados são remontagens que demarcam momentos distintos do Oficina, desde que ressurgiu das cinzas no espaço desenhado por Lina Bo Bardi -o teatro rua- e se tornou uma versão diminuta dos sambódromos brasileiros, substituindo o palco pela pista.
Em "Ham-let", a chave do espetáculo é dada pelo coro quando canta "solta o canastrão". Ali estão sintetizados o significado em inglês que a separação por um hífen, no título da peça, explicita, a leitura da obra de Shakespeare como discussão sobre encarnar papéis e as assumidas limitações do ator principal, Marcelo Drummond, mais evidenciadas, agora, no DVD.
A tradução e adaptação do original são exemplares dos procedimentos habituais a todas as encenações da companhia: o encenador é absolutamente fiel ao texto, mas se permite atualizá-lo, apropriando-se dos conteúdos de modo a interpolar entre eles sua própria dramaturgia plena de referências à realidade brasileira e às questões atinentes ao Oficina.
Essa marca, que transforma textos já longos em espetáculos intermináveis, costuma dificultar a recepção do público. No caso do DVD de "Ham-let", a dificuldade se agrava, porque, em alguns momentos, padrões de claridade e sonoridade mínimos para o registro audiovisual não são alcançados.
Em "Cacilda!", texto que José Celso Martinez Corrêa escreveu em 1991, estão já definidas muitas das características intertextuais de futuras encenações. Combinando as diversas dramaturgias que Cacilda Becker experimentou, em sua vitoriosa carreira dos anos 40 aos 60, Zé Celso serve-se da situação dramática do coma de 40 dias da atriz, depois de um derrame em 1969, para cruzar personagens e fatos biográficos num tipo de delírio encenado.
O DVD capta com rara felicidade os encantos do espetáculo, e pode ser assistido com os comentários do diretor, em paralelo, decifrando sentidos de cada uma das cenas.

Pedagogia do êxtase
"Bacantes" é o mais musical dos espetáculos gravados e o que, frente à dezena de encenações do Oficina nos últimos anos, melhor representa a disposição do grupo de tornar seu teatro um permanente culto à orgia e ao desregramento.
Melhor do que qualquer outro, também, expressa o paradoxo de esses ritos eróticos serem movidos por uma retórica racional, numa espécie de pedagogia do êxtase. A favor dela, o original de Eurípedes fornece farta argumentação. De outro lado, a bela trilha de Marcelo Pellegrini garante uma fruição mais anímica. O DVD capta bem essa tensão, assim como oferece, nos extras, exemplos de como Zé Celso construiu sua encenação no piano, a partir das canções.
Em "Boca de Ouro", o espetáculo menos longo, o texto de Nelson Rodrigues, incluindo suas rubricas, é seguido à risca, o que cria uma trama mais linear e colabora com a versão filmada. A pista do teatro tingida de vermelho funciona bem para a linda fotografia de Dib Lufti, e se alcança o melhor resultado de luz e imagem. Destaquem-se, nos extras, além do documentário histórico que está em todos os DVDs, depoimentos sobre o autor carioca e o grupo.
Fixados em DVD, os espetáculos oferecem-se à posteridade como intrigante legado do teatro brasileiro à história das artes cênicas.


Avaliação: regular ("Ham-let"); bom ("Bacantes"); ótimo ("Cacilda!" e "Boca de Ouro")




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