São Paulo, quarta-feira, 10 de março de 2010

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ANÁLISE

Aos 25, reino do axé está destroçado

MARCUS PRETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando Daniela Mercury explodiu com "O Canto da Cidade", em 1994, dinamitou também qualquer fronteira que ainda separasse a música pop que então se produzia na Bahia do público do resto do país.
Antes dela, outros artistas -como Luiz Caldas, Gerônimo, Sarajane, Margareth Menezes, os blocos Olodum, Ilê Aiyê, as bandas Asa de Águia, Reflexus- tentaram quebrar o cerco. Chegaram a se infiltrar em camadas mais populares do Sudeste, mas, para o público "sofisticado", ainda soavam como "o pessoal exótico da Bahia".
Daniela contava com outras armas de persuasão. Era branca, bonita e não era pobre. Conhecia o universo do rock e da música internacional e sabia como uma popstar devia se comportar. Tinha, portanto, maior poder de identificação com o que os ouvidos de SP e do Rio estavam interessados.
Personificava o Carnaval da Bahia, propagava a alegria e chamava o corpo à dança. Mas, disfarçada de "canária" tradicional, quebrava preconceitos às toneladas. Contra negro, contra pobre, contra candomblé, contra mestiçagem.
Caetano e Gil, entre outros, já haviam feito coisa parecida, mas nunca foram tão populares. Nem estavam emoldurados por uma batida tão irresistível.
Daniela liberou a área aqui embaixo para que, por sua voz ou pela de seus antecessores, viessem à tona (ou se reavaliassem) versos de autoestima negra nas alturas, como "Lá vem a negrada que faz o astral da avenida", "Sou amarrado nessa pele escura/ Na sua cultura/ Em sua formosura", "Eu sou negão, meu coração é a liberdade".
Ficou natural para a menina paulista branca de classe média exaltar a "baianidade nagô", o "swing da cor", "a pele escura" -temas que estavam a zilhões de quilômetros de distância dos abordados pelas bandas de pop-rock nacional dos 80, que, naqueles 90 e poucos, davam suas últimas braçadas mais bem-sucedidas.
Era o auge do axé.
Mas era absolutamente inevitável que a indústria, incontrolável e descontrolada, fosse destruir tudo logo ali adiante. Pulando para os tempos atuais, nos 25 anos do movimento, o cenário parece destroçado.
Daniela continua na ativa, tentando inovar a cada disco, mas nunca mais alcançou a mesma repercussão pública.
Em seu lugar está Ivete Sangalo. Como Daniela fazia, Ivete personifica o Carnaval da Bahia, propaga a alegria e chama o corpo à dança. Mas ela é só isso. Esteticamente, é a diluição daquela batida. O esvaziamento daquela música. E passa longe, tanto quanto pode, de qualquer discussão racial, social.
Preferiu adotar como referência principal as cantoras internacionais, tornando-se arremedo de estrelas pop como Madonna e Beyoncé. A música que produz não tem invenção, não propõe nada e não vai a lugar algum. Vive mais do carisma avassalador do que de sua arte.
Pior. Já tem um clone: Claudia Leitte. Artista sem qualquer lampejo de brilhantismo, ainda não conseguiu escapar da sensação de "genérico".
Mas, triste fim para o axé, o canto da cidade, hoje, é delas.


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