|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.
ANÁLISE
Aos 25, reino do axé está destroçado
MARCUS PRETO
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando Daniela Mercury explodiu com "O Canto da Cidade", em 1994, dinamitou também qualquer fronteira que
ainda separasse a música pop
que então se produzia na Bahia
do público do resto do país.
Antes dela, outros artistas
-como Luiz Caldas, Gerônimo,
Sarajane, Margareth Menezes,
os blocos Olodum, Ilê Aiyê, as
bandas Asa de Águia, Reflexus- tentaram quebrar o cerco. Chegaram a se infiltrar em
camadas mais populares do Sudeste, mas, para o público "sofisticado", ainda soavam como
"o pessoal exótico da Bahia".
Daniela contava com outras
armas de persuasão. Era branca, bonita e não era pobre. Conhecia o universo do rock e da
música internacional e sabia
como uma popstar devia se
comportar. Tinha, portanto,
maior poder de identificação
com o que os ouvidos de SP e do
Rio estavam interessados.
Personificava o Carnaval da
Bahia, propagava a alegria e
chamava o corpo à dança. Mas,
disfarçada de "canária" tradicional, quebrava preconceitos
às toneladas. Contra negro,
contra pobre, contra candomblé, contra mestiçagem.
Caetano e Gil, entre outros,
já haviam feito coisa parecida,
mas nunca foram tão populares. Nem estavam emoldurados
por uma batida tão irresistível.
Daniela liberou a área aqui
embaixo para que, por sua voz
ou pela de seus antecessores,
viessem à tona (ou se reavaliassem) versos de autoestima negra nas alturas, como "Lá vem a
negrada que faz o astral da avenida", "Sou amarrado nessa pele escura/ Na sua cultura/ Em
sua formosura", "Eu sou negão,
meu coração é a liberdade".
Ficou natural para a menina
paulista branca de classe média
exaltar a "baianidade nagô", o
"swing da cor", "a pele escura"
-temas que estavam a zilhões
de quilômetros de distância dos
abordados pelas bandas de
pop-rock nacional dos 80, que,
naqueles 90 e poucos, davam
suas últimas braçadas mais
bem-sucedidas.
Era o auge do axé.
Mas era absolutamente inevitável que a indústria, incontrolável e descontrolada, fosse
destruir tudo logo ali adiante.
Pulando para os tempos atuais,
nos 25 anos do movimento, o
cenário parece destroçado.
Daniela continua na ativa,
tentando inovar a cada disco,
mas nunca mais alcançou a
mesma repercussão pública.
Em seu lugar está Ivete Sangalo. Como Daniela fazia, Ivete
personifica o Carnaval da Bahia, propaga a alegria e chama o
corpo à dança. Mas ela é só isso.
Esteticamente, é a diluição daquela batida. O esvaziamento
daquela música. E passa longe,
tanto quanto pode, de qualquer
discussão racial, social.
Preferiu adotar como referência principal as cantoras internacionais, tornando-se arremedo de estrelas pop como Madonna e Beyoncé. A música que
produz não tem invenção, não
propõe nada e não vai a lugar algum. Vive mais do carisma
avassalador do que de sua arte.
Pior. Já tem um clone: Claudia Leitte. Artista sem qualquer
lampejo de brilhantismo, ainda
não conseguiu escapar da sensação de "genérico".
Mas, triste fim para o axé, o
canto da cidade, hoje, é delas.
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Música/Crítica/ "Guns N' Roses": Banda faz show genérico em Brasília Índice
|