São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 2000


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HOMENAGEM
O Telecine 5 exibe, a partir de hoje, dez filmes de destaque na trajetória do mestre dos melodramas
Destino guia ciclo sobre Douglas Sirk

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Douglas Sirk poderia ser conhecido hoje como um grande diretor de teatro. Essa foi sua primeira vocação. Poderia ser conhecido como um homem cultíssimo, conhecedor íntimo do teatro clássico, amigo de Max Brod e alguém que conheceu Kafka.
O destino no entanto conspirou para que ele fosse levado do teatro ao cinema. Da Alemanha para Hollywood. De Goethe aos melodramas.
É portanto na condição de mestre dos melodramas da Universal que o conhecemos e que sua obra pode ser conhecida em conjunto, a partir de hoje, quando o Telecine 5 começa a exibir um ciclo com dez de seus trabalhos.
É o destino, justamente, que será o grande assunto desses filmes. Seus personagens estão invariavelmente às voltas com um destino inelutável e maior do que eles. Vejamos "Imitação da Vida". Sarah Jane é uma garota negra, que não apenas odeia ser negra (porque é discriminada), como odeia sua mãe pelo mesmo motivo.
Sarah Jane voltará as costas a ela para viver como uma branca. Seguirá atrás de uma miragem de vida. É o mesmo que fará Mitch Wayne (Robert Stack) em "Palavras ao Vento", embora em sentido contrário: é filho de um magnata de petróleo, rico, casado com uma bela mulher. Mas não consegue vencer o sentimento de inferioridade que o corrói justamente porque tudo na vida o favorece.
De acordo, algumas dessas histórias estão entre as piores do mundo. Seu interesse está em permitir que Sirk tire ouro de pedra e as transfigure com um olhar às vezes cruel, às vezes irônico, mas sempre apaixonado pelo destino -por mais estrambótico que seja- de seus personagens.
Os personagens de Sirk são, aliás, sempre divididos. Tomemos "Tudo que o Céu Permite": Cary Scott (Jane Wyman) é uma viúva que acredita reencontrar a felicidade nos braços de seu jardineiro (Rock Hudson). Mas ela esbarrará no preconceito das pessoas de sua cidadezinha e, sobretudo, no de seus filhos. Ou ainda Roger Shumann (Robert Stack), ás da aviação, herói da Primeira Guerra, corteja a morte em corridas de avião, em vez de cortejar sua linda mulher (Dorothy Malone) e seu filho.
No geral, os personagens sirkianos são incapazes de viver porque sua compreensão das coisas é incapaz de abarcar a vida, sempre maior do que eles.
Daí um tipo de olhar muito característico deles, que se pode chamar de "olhar do cego", pois o personagem olha fixamente para algum objeto, mas não fixa, na verdade, nada do mundo exterior. É um olhar interiorizado. No entanto, seu mundo interior também não lhe mostra nada.
Se esses seres divididos marcam profundamente a obra de Sirk, sua mise-en-scène também é carregada de elementos que chamam a atenção para a ambiguidade das coisas: as janelas, por exemplo, são enfatizadas, porque dividem o mundo em dentro e fora; os espelhos são objetos privilegiados, porque subitamente fazem com que esses personagens se contemplem tal como são e vejam com horror aquilo em que se transformaram.
Como disse R.W. Fassbinder -seu discípulo mais apaixonado-, a obra de Sirk é antes de tudo uma soberba ilustração da diferença entre literatura e cinema.
É na maneira como dirige os atores, seus gestos, suas entonações de voz, maneira de andar, que um mundo se compõe à nossa frente para melhor se decompor em seguida.
No fim, esses seres precários, às vezes risíveis, revelam-se, como um espelho, imagens de nós mesmos. É nesse retorcimento último que somos arrastados para dentro do filme, como na cena sublime em que Jane Wyman, após ser obrigada a deixar o amante e a viver na plena solidão, recebe dos filhos, de presente, uma TV para lhe fazer companhia.
Este é só um dos momentos exemplares da obra exemplar de Douglas Sirk.


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