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HOMENAGEM
O Telecine 5 exibe, a partir de hoje, dez filmes de destaque na trajetória do mestre dos melodramas
Destino guia ciclo sobre Douglas Sirk
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Douglas Sirk poderia ser conhecido hoje como um grande diretor de teatro. Essa foi sua primeira
vocação. Poderia ser conhecido
como um homem cultíssimo, conhecedor íntimo do teatro clássico, amigo de Max Brod e alguém
que conheceu Kafka.
O destino no entanto conspirou
para que ele fosse levado do teatro
ao cinema. Da Alemanha para
Hollywood. De Goethe aos melodramas.
É portanto na condição de mestre dos melodramas da Universal
que o conhecemos e que sua obra
pode ser conhecida em conjunto,
a partir de hoje, quando o Telecine 5 começa a exibir um ciclo com
dez de seus trabalhos.
É o destino, justamente, que será o grande assunto desses filmes.
Seus personagens estão invariavelmente às voltas com um destino inelutável e maior do que eles.
Vejamos "Imitação da Vida". Sarah Jane é uma garota negra, que
não apenas odeia ser negra (porque é discriminada), como odeia
sua mãe pelo mesmo motivo.
Sarah Jane voltará as costas a ela
para viver como uma branca. Seguirá atrás de uma miragem de
vida. É o mesmo que fará Mitch
Wayne (Robert Stack) em "Palavras ao Vento", embora em sentido contrário: é filho de um magnata de petróleo, rico, casado com
uma bela mulher. Mas não consegue vencer o sentimento de inferioridade que o corrói justamente
porque tudo na vida o favorece.
De acordo, algumas dessas histórias estão entre as piores do
mundo. Seu interesse está em permitir que Sirk tire ouro de pedra e
as transfigure com um olhar às
vezes cruel, às vezes irônico, mas
sempre apaixonado pelo destino
-por mais estrambótico que seja- de seus personagens.
Os personagens de Sirk são,
aliás, sempre divididos. Tomemos "Tudo que o Céu Permite":
Cary Scott (Jane Wyman) é uma
viúva que acredita reencontrar a
felicidade nos braços de seu jardineiro (Rock Hudson). Mas ela esbarrará no preconceito das pessoas de sua cidadezinha e, sobretudo, no de seus filhos. Ou ainda
Roger Shumann (Robert Stack),
ás da aviação, herói da Primeira
Guerra, corteja a morte em corridas de avião, em vez de cortejar
sua linda mulher (Dorothy Malone) e seu filho.
No geral, os personagens sirkianos são incapazes de viver porque
sua compreensão das coisas é incapaz de abarcar a vida, sempre
maior do que eles.
Daí um tipo de olhar muito característico deles, que se pode
chamar de "olhar do cego", pois o
personagem olha fixamente para
algum objeto, mas não fixa, na
verdade, nada do mundo exterior. É um olhar interiorizado. No
entanto, seu mundo interior também não lhe mostra nada.
Se esses seres divididos marcam
profundamente a obra de Sirk,
sua mise-en-scène também é carregada de elementos que chamam
a atenção para a ambiguidade das
coisas: as janelas, por exemplo,
são enfatizadas, porque dividem
o mundo em dentro e fora; os espelhos são objetos privilegiados,
porque subitamente fazem com
que esses personagens se contemplem tal como são e vejam com
horror aquilo em que se transformaram.
Como disse R.W. Fassbinder
-seu discípulo mais apaixonado-, a obra de Sirk é antes de tudo uma soberba ilustração da diferença entre literatura e cinema.
É na maneira como dirige os
atores, seus gestos, suas entonações de voz, maneira de andar,
que um mundo se compõe à nossa frente para melhor se decompor em seguida.
No fim, esses seres precários, às
vezes risíveis, revelam-se, como
um espelho, imagens de nós mesmos. É nesse retorcimento último
que somos arrastados para dentro do filme, como na cena sublime em que Jane Wyman, após ser
obrigada a deixar o amante e a viver na plena solidão, recebe dos filhos, de presente, uma TV para
lhe fazer companhia.
Este é só um dos momentos
exemplares da obra exemplar de
Douglas Sirk.
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