São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 2000


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CRÍTICA
Pragmatismo marca personagens de Paes

LÚCIA NAGIB
da Equipe de Articulistas


A sugestão política contida no belo título "Saudade do Futuro" é enganosa.O novo documentário do brasileiro Cesar Paes (diretor) e da malgaxe Marie-Clémence Blanc-Paes (produtora), que antes realizaram, entre outros, o excelente "Ensopado de Awara-Dendê", não lamenta aquele tão prometido "país do futuro" que o Brasil nunca se tornou e não ataca o sistema perverso que o impediu.
"Saudade do Futuro", expressão extraída de Clarice Lispector, retrata migrantes nordestinos em São Paulo que não parecem particularmente nostálgicos de sua terra natal, nem decepcionados com o "futuro" que imaginavam para si na megalópole do sul.
Pragmatismo e integração, mesmo que dolorosos e conseguidos às custas de uma dura luta contra o preconceito, constituem a marca de todos os personagens do filme. Repente e embolada são a linguagem que o casal Paes encontrou para narrar o documentário pela boca de seus próprios personagens, vários deles extraordinários artistas.
Como de praxe na filmografia dos diretores, a literatura oral aqui não entra em conflito com a "modernidade" urbana. Ao contrário, explica-a, num "país de contrastes" como o Brasil.
De fato, o que chama a atenção em "Saudade do Futuro" é a agudeza com que os nordestinos sabem captar, em seus versos, as especificidades de São Paulo, lançando-lhe um olhar ao mesmo tempo do observador externo e do "insider", já que conhecem a cidade a partir de suas bases, tendo-a construído com suas próprias mãos.
"São Paulo é o lugar que o nordestino adotou", diz um dos repentistas na abertura do filme, e então, no frenesi da cidade, nas massas se espremendo nas ruas e no metrô, são só rostos de cearenses, paraibanos, pernambucanos, alagoanos, baianos que aparecem. São Paulo "é" o Nordeste do qual tanto insiste em se distinguir.
E esse Nordeste em São Paulo não é necessariamente infeliz. Numa das melhores tiradas do filme, vemos nordestinos dando duro numa linha de montagem, a qual, de início, o espectador imagina pertencer a alguma indústria metalúrgica.
Mas, de repente, o produto final: o pandeiro! A fábrica de pandeiros, requisito essencial do forró e do baião que escandescem o filme com seu ritmo contagiante, sintetiza a luta e o lazer do nordestino, que não se excluem mutuamente.
"Saudade do Futuro" insiste, ainda, em mostrar que "nordestino" não é apenas o camelô da praça da Sé, mas também "vencedores", como a ex-prefeita Luiza Erundina, o diretor da Pinacoteca do Estado, Emanuel Araújo, ou o radialista Assis Ângelo, que mantém um prestigiado programa de música brasileira na rádio Capital (AM, 1.040 kHz). Mesmo que estes sejam a minoria absoluta, o fato de desvitimizar o migrante e mostrá-lo como alguém que controla seu destino e, mesmo miserável, consegue driblar a urbe caótica e hostil, já conta vários pontos a favor do filme.
Falhas há, a mais evidente sendo a ausência de identificação dos personagens apresentados, que confunde os brasileiros e confundirá ainda mais os estrangeiros que assistirem ao filme. Mas um documentário que, a despeito de seu inegável caráter etnográfico, se realiza sem uma gota de paternalismo, vencendo o mais difícil desafio de seu gênero.


Avaliação:    


Filme: Saudade do Futuro
Quando: hoje, às 21h (só para convidados no Cinesesc; veja endereço no quadro ao lado; quinta, às 22h, no MIS; e domingo, às 19h30, no Centro Cultural Banco do Brasil, r. Primeiro de Março, 66, centro, Rio)
Quanto: grátis no Cinesesc e no MIS


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