São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 2000


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Pavarotti decepciona em Salvador

IRINEU FRANCO PERPETUO
enviado especial a Salvador

Muita chuva, alguma tosse e pouca voz foi o que Luciano Pavarotti trouxe para o público soteropolitano, sábado à noite, no Bahia Marina, em apresentação conjunta com as cantoras locais Gal Costa e Maria Bethânia.
Que o tenor italiano é sinônimo de aguaceiro, disso o público de Londres e São Paulo já sabia. Não é outro o motivo que o fez ganhar da imprensa britânica a alcunha de "Pava-wetti" (trocadilho envolvendo seu nome e a palavra inglesa "wet", que significa úmido).
A novidade foi ver aquela que já foi considerada uma das mais belas vozes do planeta completamente destimbrada, com pigarros nas árias de "Tosca" e "Rigoletto", encurtando notas, fugindo de agudos, picotando frases e atropelando o acompanhamento orquestral, fornecido pelo esforçado e experiente maestro Leone Magiera, reduzido à impotência pela incompetência que o cercava.
O aguaceiro começou a cair sobre as 7.000 pessoas que se encaminhavam para o show por volta das 20h30. Rapidamente, o público foi literalmente embrulhado pelos organizadores do evento em capas de chuva de plástico.
Nem o senador Antonio Carlos Magalhães escapou da chuva -e foi flagrado no telão impávido, enfrentando o aguaceiro de terno, e sem capa. No palco, os músicos que iriam acompanhar o espetáculo também se mostravam preocupados, e os microfones chegaram a projetar para a platéia um brado de "está molhando tudo!".
Bahia Marina é um local para eventos ao ar livre, em Salvador. Marcando os 500 anos do Descobrimento do Brasil, o show de sábado foi bancado pela operadora de TV paga Directv (responsável pela transmissão ao vivo) e pelas redes HBO e Bandeirantes (que exibe o espetáculo dia 22, às 22h).
Depois da indomável Orquestra Sinfônica da Bahia -que quase arruinou um concerto de Montserrat Caballé em São Paulo, ano passado- estropiar a abertura do "Guarany", de Carlos Gomes, com tempos pouco ortodoxos, Maria Bethânia entrou no palco, toda de branco, às 21h25, para cantar "Rosa dos Ventos".
Vocalmente, os seguros graves de Bethânia (que cantou ainda "Fera Ferida", "Terezinha", "Explode Coração" e "Canção da Manhã Feliz") foram o melhor item da noite. Contudo, ela acabou sendo prejudicada por dois fatores: como foi a primeira a entrar no palco, o público ainda não estava devidamente instalado, e ela teve de conviver com vaivém de gente com bebida na mão e longas conversações entabuladas ao celular. Além disso, as pessoas que se encontravam mais distantes dos artistas se queixavam de que o som não estava chegando.
Gal Costa adentrou a área de negro, com problemas técnicos aparentemente resolvidos e um carisma que fez todos esquecerem que ela já não tem mais a mesma facilidade de sustentar os agudos que foram sua glória.
Conquistou a audiência com "Canta Brasil", "Nada Mais", "Aquarela do Brasil" e "Se Todos Fossem Iguais a Você". No meio de sua segunda canção, "Garota de Ipanema" (cantada em português e inglês), a chuva parou.
Tempo seco, Pavarotti em cena. Tudo parecia pronto para um final feliz. Contudo, desde os primeiros acordes de "Addio, Fiorito Sil" (ária da "Madama Butterfly", de Puccini), notou-se que não seria assim. Aos 64 anos, o tenor utiliza nos cabelos uma tintura negra tão artificial quanto a de Gustav von Aschembach no filme "Morte em Veneza". Porém, a decrepitude vocal, infelizmente, não é tão fácil de camuflar quanto a capilar.
Pavarotti não tinha a responsabilidade de projetar sua voz em um teatro sem amplificação: não, os microfones o ajudavam. Bastava cantar. Nem isso ele conseguiu.
O tenor apanhou não apenas das seis árias de ópera que incluiu no programa como ainda das três cançonetas italianas ("Mattinata", "La Girometta" e "Non Ti Scordar di Me") e até da espanhola "Granada". Havia ainda esperanças de que a noite poderia ser salva pouco antes das 23h, quando Bethânia e Gal se juntaram ao italiano para cantar, com muito estilo, "Manhã de Carnaval".
Mas ficou só na ameaça. Em "O Sole Mio", o caos se instaurou, dentro e fora do palco. Cada um dos três cantou em uma altura, um ritmo e uma letra. Indulgente, Pavarotti (que arruinara a língua portuguesa em "Manhã de Carnaval") sorria para as dificuldades das cantoras brasileiras com o dialeto napolitano. E o público, sempre caloroso e benevolente, acabou sendo dispersado pela chuva torrencial que começou a cair naquele exato instante. São Pedro, se existe, é sábio: não poderia haver conclusão melhor para este autêntico "Titanic" musical do que água. Muita água.


O jornalista Irineu Franco Perpetuo viajou a Salvador a convite da HBO

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