|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
As identificações e a possibilidade de pensar
"Carandiru", de Hector
Babenco, estréia amanhã. O filme tem a mesma notável qualidade moral do livro de
Drauzio Varella ("Estação Carandiru"), no qual se inspira.
Claro, ambos (o livro e o filme)
devolvem aos presidiários sua humanidade: são todos nossos semelhantes. Mas isso é fácil, quase automático, pois temos uma verdadeira disposição para reconhecer
que o outro é gente. Assista a um
filme sobre a vida de Jack, o Estripador ou do "maníaco do parque". Inevitavelmente, eles parecerão humanos, demasiado humanos. Olhe só, o Jack era tão
querido quando criança, o padrasto o tratava mal, a mãe não
lhe dava carinho. E o "maníaco"
era pobre, triste, não tinha brinquedos.
Paradoxalmente, apesar dessa
franca benevolência, também nos
resulta fácil excluir. Basta escolher outros filmes. Esqueça os dois
bandidos e considere a história de
suas vítimas. Pense no futuro que
foi negado às mulheres esquartejadas e estupradas, imagine a dor
dos que as amavam: Jack e o "maníaco" aparecerão como membros de uma outra espécie, bactérias repugnantes que pedem a intervenção de uma justiça antibiótica.
Nenhuma contradição entre essas duas atitudes. Ambas funcionam do mesmo jeito: por identificação.
A grande idéia ocidental e moderna, segundo a qual pertencemos todos à mesma tribo, alimenta-se de uma empatia espontânea: nos colocamos no lugar dos
outros. Essa propensão para a
identificação responde a uma urgência psicológica. Somos sempre
convidados a inventar livremente
nossas vidas: é uma missão incômoda e dolorosa. Portanto estamos dispostos a acolher calorosamente qualquer um com quem
possamos nos identificar. Quem
sabe consigamos, assim, definir
um pouco quem somos nós.
Em suma, por sermos órfãos de
identidades estabelecidas, acabamos sedentos de identificações.
Bem mais difícil é reconhecer a
humanidade dos outros sem confundir-se com eles, ou seja, aceitar
que o outro é nosso semelhante
sem vestir sua pele como se fosse
um casaco.
Esta é a qualidade moral de
"Carandiru": os detentos do infausto estabelecimento paulista
são familiares, próximos, mas
nem por isso eles se tornam invejáveis ou mesmo aceitáveis.
Quase sempre a possibilidade
de um juízo ou de um gesto moral
exige esta condição: reconheço
que o outro é meu semelhante,
aprendo a não excluí-lo, mas a
empatia não se transforma em
justificação ou em apologia, porque não se resolve numa identificação.
É óbvio: com a exceção de Deus
(que, aliás, está de férias), ninguém contempla o mundo de cima. Vejo a criminalidade no Rio
e no Brasil a partir do lugar em
que estou: branco, negro ou cafuzo, descendente de europeus ou de
índios, desempregado ou empresário, favelado ou condômino,
morador de uma grande ou de
uma pequena cidade etc.
Do mesmo jeito, vejo a guerra
no Iraque por minha janela. Sou
norte-vietnamita e minha família
sumiu nos bombardeios de Hanói
ou nasci em Saigon e passei pelos
campos de reeducação depois da
Guerra do Vietnã; sou camponês
ex-sandinista na Nicarágua ou
polonês ex-dissidente; palestino,
conto os mortos da Intifada ao redor de mim ou, americano, vejo
os laços amarelos nas janelas de
meus vizinhos que rezam pelos filhos que combatem em Bagdá.
Sempre entendo o mundo a
partir do lugar que ocupo. Mas
não é obrigatório que a diferença
de lugares nos force ao silêncio ou
ao simples enfrentamento. Habermas, talvez o último grande
pensador que acredita na eficácia
da razão, também reconhece que
o conhecimento se origina numa
posição específica ou, usando seu
termo, num "interesse". Contudo
a disparidade desses interesses
não deveria impedir que fosse
possível pensar e mesmo dialogar
com equanimidade.
Não sei se compartilho o otimismo de Habermas. O centro de onde cada um de nós organiza o
mundo é uma rede complexa de
relações, lembranças, histórias e
crenças singulares (que nem conhecemos inteiramente). Ora,
constato que a chance de dialogar
e de pensar acaba quando esse
centro nos aparece como a plenitude exultante de uma identificação. Não tenho como refletir sobre
a criminalidade que nos assola se
sou morador-dos-Jardins-ou-da-zona-sul do mesmo jeito que posso ser torcedor corintiano. Não tenho como refletir sobre a guerra
no Iraque se sou latino-americano-de-veias-abertas-pelo-FMI do
mesmo jeito que visto a camiseta
do Brasil quando entra em campo a seleção.
O triunfo das identificações produz oposições estéreis: alguém
olha para os avanços do sétimo
regimento de cavalaria sonhando
em ser John Wayne, e outro se alegra com as imagens de um marine morto, tomado pelo devaneio
de ser o chefe dos índios na batalha de Little Big Horn.
Da mesma forma, enquanto os
ônibus queimam no Rio, alguém
torce pelo Comando Vermelho:
ele é Pancho Villa liderando o
partido dos injustiçados. Outro é
Clint Eastwood, o inspetor Harry,
convencido de que só um revólver
Magnum 44 acabará com o problema do crime.
Uma consolação. Não é complicado reconhecer o pensamento
que se alimenta de identificações:
é a ladainha das certezas.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Crítica: Filme recupera dia-a-dia na clandestinidade Próximo Texto: Panorâmica - Artes plásticas: Morre, aos 94, escultor Jorge Oteiza Índice
|