UOL


São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Literatura como sintoma

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Há livros que lemos como literatura e livros que lemos como entretenimento. E há (o que é menos frequente) livros que lemos como sintoma. É esse o caso de "$ 29,99", escrito por Frédéric Beigbeder.
Publicado na França em 2000 e lançado este ano no Brasil, "$ 29,99" é um romance satírico sobre o meio publicitário. Seu narrador, Octave, é um redator responsável por criar frases para campanhas da agência em que trabalha. O próprio romance, porém, é uma peça publicitária às avessas: Octave escreve o livro, revelando de modo pouco edificante os bastidores da profissão, para ser demitido e receber uma indenização que lhe permita gozar os prazeres materiais que passou a vida anunciando em outdoors e comerciais de TV.
Beigbeder tem um estilo nervoso e um humor destrutivo que lembram Michel Houellebecq. As reuniões e conversas com figuras caricatas (diretores de criação, representantes de multinacionais, modelos) servem de pretexto para o escritor destilar suas máximas sobre a sociedade de consumo e para descrever um cotidiano feito de marcas, sexo compulsivo, farto consumo de cocaína e overdoses disfarçadas de infarto.
Nada é totalmente sério ou totalmente irônico em "$ 29,99". Beigbeder mistura Cioran e Céline com Hunther Thompson e o manifesto do Unabomber. Os aforismos que pontuam a ação do romance colocam a erudição de Beigbeder a serviço de uma engraçadíssima denúncia dessa paisagem contemporânea em que todos parecem clones circulando por uma Miami universal.
Com "$ 29,99", estamos muito próximos do mundo em que vivemos. Estaremos, porém, próximos da literatura?
O romance de Beigbeder tenta responder ficcionalmente a um problema pouco discutido: por que não existe ficção de qualidade com as personagens que melhor representam a vida nas grandes metrópoles? Por que na chamada "alta literatura" praticamente não existem executivos e secretárias, banqueiros e bancários, empresários, publicitários e investidores da Bolsa? Por que certos ambientes cosmopolitas (o escritório, o hotel, o aeroporto, a agência de banco, a multinacional) só encontram espaço nos "best sellers" de autores descartáveis como Harold Robbins e Arthur Hailey?
Em um ensaio intitulado "Ainda Existem Vidas Romanescas", publicado no livro "Caos" (Brasiliense), o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini sugere que a própria vida perdeu seu caráter singular ou heróico, aquela casualidade passível de ser mimetizada pela narrativa. "Os homens tendem cada vez mais a considerar o que lhes acontece como inteiramente previsto e normal; a civilização técnica e a produção em série determinam milhões de destinos todos iguais e, portanto, privados daquele espanto diante do evento que é o sentido do romanesco", escreve o diretor.
Não é por acaso que boa parte do romance moderno se refugiou em vivências interiores, oníricas ou fantásticas (basta pensar nos fluxos de consciência de Joyce e Clarice Lispector, nos anti-heróis sonâmbulos de Kafka, no universo imaginário dos escritores do "boom" latino-americano).
Obviamente, ainda existem narrativas "naturalistas", mas elas pressupõem uma fuga do mundo pasteurizado, caso do romance regionalista e, mais recentemente, de um narrador brilhante como Milton Hatoum, que teve de efetuar um recuo no tempo e um deslocamento no espaço (a Manaus de sua memória familiar) para tornar verossímil o drama fratricida de "Dois Irmãos".
No caso de "$ 29,99", não há esse afastamento, mas uma cisão entre a matéria narrada (o dia-a-dia de um publicitário, com seu glamour estereotipado) e a voz do narrador que tudo satiriza, mas que não consegue escapar da linguagem com que esse mundo se reproduz (um bom contraponto seria "Sexo", de André Sant'Anna, que mobiliza todos os estereótipos da sociedade massificada para corroê-la pelo excesso).
Beigbeder, enfim, mostra que um romance que adere à alienação reinante, a ponto de seu título ser o preço com que é comercializado, é um sintoma de que, nessa realidade, não existem mais vidas romanescas.


$ 29,99  
Autor: Frédéric Beigbeder
Tradutor: Procópio Abreu
Editora: Record
Quanto: R$ 29,99 (288 págs.)



Texto Anterior: Teatro: O bêbado e a ninfomaníaca
Próximo Texto: Livros/lançamentos - "A Tarde da Sua Ausência": Cony desenrola processo de dissolução de uma família
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.