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RODAPÉ
Literatura como sintoma
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Há livros que lemos como
literatura e livros que lemos
como entretenimento. E há (o que
é menos frequente) livros que lemos como sintoma. É esse o caso
de "$ 29,99", escrito por Frédéric
Beigbeder.
Publicado na França em 2000 e
lançado este ano no Brasil, "$
29,99" é um romance satírico sobre o meio publicitário. Seu narrador, Octave, é um redator responsável por criar frases para
campanhas da agência em que
trabalha. O próprio romance, porém, é uma peça publicitária às
avessas: Octave escreve o livro, revelando de modo pouco edificante os bastidores da profissão, para
ser demitido e receber uma indenização que lhe permita gozar os
prazeres materiais que passou a
vida anunciando em outdoors e
comerciais de TV.
Beigbeder tem um estilo nervoso e um humor destrutivo que
lembram Michel Houellebecq. As
reuniões e conversas com figuras
caricatas (diretores de criação, representantes de multinacionais,
modelos) servem de pretexto para o escritor destilar suas máximas sobre a sociedade de consumo e para descrever um cotidiano
feito de marcas, sexo compulsivo,
farto consumo de cocaína e overdoses disfarçadas de infarto.
Nada é totalmente sério ou totalmente irônico em "$ 29,99".
Beigbeder mistura Cioran e Céline com Hunther Thompson e o
manifesto do Unabomber. Os
aforismos que pontuam a ação do
romance colocam a erudição de
Beigbeder a serviço de uma engraçadíssima denúncia dessa paisagem contemporânea em que
todos parecem clones circulando
por uma Miami universal.
Com "$ 29,99", estamos muito
próximos do mundo em que vivemos. Estaremos, porém, próximos da literatura?
O romance de Beigbeder tenta
responder ficcionalmente a um
problema pouco discutido: por
que não existe ficção de qualidade
com as personagens que melhor
representam a vida nas grandes
metrópoles? Por que na chamada
"alta literatura" praticamente não
existem executivos e secretárias,
banqueiros e bancários, empresários, publicitários e investidores
da Bolsa? Por que certos ambientes cosmopolitas (o escritório, o
hotel, o aeroporto, a agência de
banco, a multinacional) só encontram espaço nos "best sellers" de
autores descartáveis como Harold Robbins e Arthur Hailey?
Em um ensaio intitulado "Ainda Existem Vidas Romanescas",
publicado no livro "Caos" (Brasiliense), o cineasta italiano Pier
Paolo Pasolini sugere que a própria vida perdeu seu caráter singular ou heróico, aquela casualidade passível de ser mimetizada
pela narrativa. "Os homens tendem cada vez mais a considerar o
que lhes acontece como inteiramente previsto e normal; a civilização técnica e a produção em série determinam milhões de destinos todos iguais e, portanto, privados daquele espanto diante do
evento que é o sentido do romanesco", escreve o diretor.
Não é por acaso que boa parte
do romance moderno se refugiou
em vivências interiores, oníricas
ou fantásticas (basta pensar nos
fluxos de consciência de Joyce e
Clarice Lispector, nos anti-heróis
sonâmbulos de Kafka, no universo imaginário dos escritores do
"boom" latino-americano).
Obviamente, ainda existem narrativas "naturalistas", mas elas
pressupõem uma fuga do mundo
pasteurizado, caso do romance
regionalista e, mais recentemente,
de um narrador brilhante como
Milton Hatoum, que teve de efetuar um recuo no tempo e um
deslocamento no espaço (a Manaus de sua memória familiar)
para tornar verossímil o drama
fratricida de "Dois Irmãos".
No caso de "$ 29,99", não há esse afastamento, mas uma cisão
entre a matéria narrada (o dia-a-dia de um publicitário, com seu
glamour estereotipado) e a voz do
narrador que tudo satiriza, mas
que não consegue escapar da linguagem com que esse mundo se
reproduz (um bom contraponto
seria "Sexo", de André Sant'Anna, que mobiliza todos os estereótipos da sociedade massificada
para corroê-la pelo excesso).
Beigbeder, enfim, mostra que
um romance que adere à alienação reinante, a ponto de seu título
ser o preço com que é comercializado, é um sintoma de que, nessa
realidade, não existem mais vidas
romanescas.
$ 29,99
Autor: Frédéric Beigbeder
Tradutor: Procópio Abreu
Editora: Record
Quanto: R$ 29,99 (288 págs.)
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