São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2007

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Manos

Onde querem samba ou malandragem, eles são pedra, revolta, aridez, capuz e tênis de jogador de basquete

A CULTURA do rap da periferia paulistana é um reflexo da modernização brasileira que se projeta sobre a grande mancha escura -e de pele escura- dos excluídos que ela própria gerou.
Em sua estratégia de confronto, agressiva e esquiva, os manos parecem mimetizar um traço alienado de nossa elite "moderna", que se mira no espelho do "Primeiro Mundo" e se encanta com a miragem. Despem-se também eles dos signos "nacionais", no caso, os que emolduram e tipificam o negro brasileiro pobre, e vão buscar sua forma de expressão nas atitudes do hip hop, originalmente norte-americanas, hoje difundidas e reprocessadas nas periferias globais.
Eles não podem vestir Prada, mas podem enfiar gorros na cabeça, casacões e calças largas para tornar o combate menos humilhante. Onde querem samba ou malandragem, são pedra, revolta, aridez, capuz e tênis de jogador de basquete.
Seu canto tem uma nota feia e triste, como as extensões empobrecidas da metrópole, as vastas Brasílias que deixaram de ser projetadas, os edifícios que deixaram de ser erguidos, as escolas que não foram construídas, as ruas que não foram asfaltadas.
Eles são a sombra e a sobra, a parte que não coube na modernização incompleta e desigual do Brasil, a massa dos suspeitos de sempre, as vítimas preferenciais das investidas da polícia, os caras que estão encostados contra o muro, com as mãos erguidas na cabeça, levando pontapés e cutucadas de cassetetes nas costelas, como vejo nas escuras madrugadas paulistanas, pelo vidro insulfilm do meu carro.
Sim, entre eles há bandidos, e eu tenho medo. Afinal, não são bandidos como os do lado de cá da ponte, que podem roubar milhões de obras públicas e passear em seus automóveis importados, sem precisar apontar um revólver para minha cabeça. Eles sabem disso, não gostam disso e reclamam disso. Suas letras de música retratam o cotidiano de uma juventude condenada, atacam a polícia que os ataca, falam de gente que apodrece nos presídios.
Na verdade, embora reconheça o talento, me interesse pelo fenômeno e goste do impulso contestador, não tenho muita paciência com a aura de heróis da resistência que os Racionais MC's gostam de cultivar, muito menos com a onda separatista que preferem propagar.
Acho as músicas em geral chatas e, diferentemente deles, estou com aqueles que consideram o mito da democracia racial um patrimônio utópico brasileiro a ser preservado e realizado.
A confusão entre policiais e um grupo de fãs dos Racionais na madrugada da Virada Cultural tem servido para reafirmar velhos preconceitos. De um lado, o incidente encoraja a visão discriminatória da classe média atemorizada com os jovens negros da periferia. De outro, agitam-se as mitologias tardias sobre rebelião de excluídos contra o Estado burguês e a repressão.
E eu, o que penso sobre a violência da polícia e as explicações das autoridades que consideraram a intervenção "tecnicamente" correta?
Penso no Haiti.
Não é aqui?


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